segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CONTOS CONTINUAÇÃO

SÃO TANTOS OS ANDARES ...

                                                             SPCunha

                   Em longa existência, num sucessivo mundo colorido de sonhos, arquitetei enorme edifício. Em cada andar, coloquei uma princesa, preferentemente, jovem. Bem no centro, há um elevador envidraçado. Cada vez que subo, vejo os cômodos vazios, foram-se todas para seus destinos. Ainda percebo suas vestes e as recordo desnudas. Ficou, apenas, tão somente, o perfume, doce aroma de cada uma delas. De todas, sinto saudade. Foram minhas esposas de plantão. Não me importa por quanto tempo. Rescende o trescalar das flores, a intensidade dos afetos. Retenho indelével, litúrgico, as confissões proferidas. Eram juras de eterno amor e estas não se extinguiram. Estão presentes em meu imaginário. Há uma saudade para cada instante de ternura.
                   Hoje, tudo está deserto. Quando aciono o botão do elevador, para subir, vou até o último andar. Ninguém encontrando, automaticamente, retorno ao térreo e encontro muitas delas, caminhando pelas ruas. Às vezes, percorro as vinte e tantas cidades, onde residi e vou identificando antigos amores. Muitas encontraram seus verdadeiros
escolhidos. Casaram-se, de verdade, criaram raízes profundas. Desejo-as muito felizes.
                   Ser-me-ia edificante escrever a história de cada romance. Poderia ser um livro com inúmeros capítulos. Entretanto, não resistiria tamanho impacto.
                   Mas, do fundo do meu coração, proclamo: amei-as todas, as cobri de carinhos, no desejo de fazê-las felizes, enquanto cumpriam o seu mandato. E o fizeram com ardor e competência.
                   Aos curiosos, direi que este é o segredo de minha longevidade. Esta será prêmio ou castigo? Pouco me importa. O extraordinário é que o prédio de meus sonhos não ruiu, passou pelo tempo, está firme e ereto. E o controle social? Acaso, sociedade existe? Já nem mais sei. Importam-me o que penso de mim mesmo e as lembranças dos eflúvios decorrentes das madrugadas de delírio. Privilégio, fortuna de poucos!... Agora, estou a edificar a cobertura. Certamente, o derradeiro andar.


Sensacional

                   Espetacular foi a entrada da espanhola no palco. Curvas perfeitas, voz melodiosa, acenos frágeis. Aconteceu nos idos de 1946. Estava hospedado no Castelo da Praça, então, Barão do Rio Branco, hoje, João Zelante.
                   O Jorginho, turquinho malandro, desde a infância, convidou-me e fomos ao Cassino do Grande Hotel. Era um espetáculo de artistas da Rádio Gazeta. A espanholita tocava castanholas como ninguém. O pai do Nélson Vaca e o gerente da Casa Bancária, bolsas abastadas, disputavam as benesses da cantora. O Nélson, nosso colega de internato, chorava raivoso. “Minha santa mãe dormindo em casa e meu pai nessa traição
diabólica”. Quem venceu a parada foi o homem de finanças. O filho único, sentiu-se vingado. “Meu pai perdeu a parada.
                   Nós rodeávamos o balcão das bebidas, quando, meia hora após, surgiu o Sto. C. com o terno de linho amassado, um pouco de visível poeira e foi dizendo, “além de homem, é bom de briga”. Apanhou e foi obrigado a trazê-lo de volta.
                   Acabou o espetáculo. O turquinho já morreu. Fiquei para narrar os sucessos.


O BEPE E A BASTIANETA
                                                                                                                 
                                   
                                      Penso que além da memória consciente, da subconsciente, da inconsciente, dos arquétipos e mais o que se possa ter até agora descoberto, existe a memória genética, algo que independe do ser e está no mais profundo do ser, na célula primeira e nas que se lhe seguem, e ao nascer já está em si, já é seu como a pupila, ou a carótida. No fundo de cada ser vem o essecial do que ele será.  
                                                                            Carlos Lacerda, em a CASA DE MEU AVÔ.
                                 
             Guardavam do nascimento, a marca e a dinâmica de suas origens. Memória das células, simplicidade franciscana. Diariamente, percorriam as ruas centrais de serra negra, acompanhados de seus rafeiros. Eram-lhes, o patrimônio. Embora em tempos da segunda grande guerra mundial, desconheciam-na. Não eram beligerantes.
                   Traziam latinhas, nas quais almas caridosas depositavam alimentos. Comiam primeiro, seus cãezinhos, após eles. O povo, perplexo, se admirava desse procedimento. Finalmente, devolviam-se à água furtada, casebre de arrabalde, habitada por eles.
                   Os dois se amavam tanto, traduzido na troca de ternos olhares, conversa velada de enamorados permanentes.
                   Eram as figuras mais pobres da comunidade. Pobreza econômico-financeira. Entretanto, fortuNa incomensurável de humildade e invejado desvelo pelos seus semelhantes.
                   Assim ocorreu, até que Bastianeta ficasse viúva. Ao partir para a eternidade, bepe não deixou roupa, foi enterrado com um vestido de chita da mulher, que tanto o amou e se consumiu, afogada na saudade.
                   Esses épicos sucessos deram origem à uma campanha promovida pelo Dr. Jovino Silveira, médico e “pai dos pobres”.
                   Sob o pálio da pobreza, dos dois milionários do amor, o povo financiou a construção do Asilo “São Francisco de Assis”, que vem abrigando centenas de necessitados. Lá encontramos a fotografia das figuras mais nobres e carismáticas da História de serra negra.
                   Adentrando, àquela casa de caridade, sentimos a presença dos personagens originários daquela obra. Interiorizamos, então, forte vibração e começamos a entender a magnífica lição cristã, administrada por dois rurículas, cuja aposentadoria recebiam em suas latinhas, pedindo esmolas.
                   Amavam-se, conversando com Deus!...
                   Sabemos que a existência, efêmera, tem início na concepção e termina com a morte do soma, quando a alma passa para a vida, esta eterna. Lá, no outro plano espiritual, no convívio com Deus, certamente, estão Dr. Jovino Silveira, “Pai dos Pobres”, bepe e bastianeta,
reunidos. espíritos cintilantes, esparzindo luz sobre os que caminham aflitos por este vale de lágrimas.
                   Foram, os três, seguidores de Jesus, quando disse: Amai-vos, uns aos outros, como eu muito vos amei!...


Duas pedras ...

                   conversavam à beira de imenso rio. Vinham de longe, pouco abaixo da nascente. Confidenciaram, após muito rolar. - Desprendi de elevada rocha, diz a maior; desliguei-me das raízes de uma árvore, pelo que me dizes, na orla oposta, contempla a menor. Numa só identidade, as duas deitaram-se pela cachoeira abaixo, durante uma enchente de janeiro e as águas, em espadano, cantaram, atirando-as na esplanada.
                   Ali estavam expostas, desnudas, aos raios solares, sonolentas, sobre a areia tépida. Saudosas dos ares da cumeada da montanha, cônscias de que, jamais, voltariam às origens...
                   - Assim, ocorreu com um imigrante, extraído da terra natal. vindo, nos porões de um navio precário, sacolejando. Atracado ao porto de Santos, viera a viatura, levando-o para o abrigo do Brás, donde foi
conduzido a uma fazenda de café. Sem esposa e filhos, carpiu, de sol a sol, concomitante às agruras da ausência da família. Em longo período, passou fome, acumulou uns mil réis e escreveu para que viessem os seus. Estes não mais lhe pertenciam. Marido ausente, um novo assente... Sua Maria caíra nos braços de um seu compatriota. Aquela integral família nunca veio. Giussepe se arranjou com uma negra da cor do azeviche e, quando olhava para os negrinhos, os comparava, mentalmente, aos deixados do outro lado do oceano, de cabelos loiros e olhos azuis.
                   Mas, a negra era frequente no eito, ajudava-o, sob todos os títulos e o imigrante progrediu. Alimentava-se de feijão preto e polenta. O complemento eram laranjas dos cafezais.
                   Já bem sucedido, proprietário rural, seu filho e da Antônia, Tonha, como a chamavam, foi convocado para integrar o exército brasileiro e servir na Itália. Era a segunda Grande Guerra Mundial, os aliados e o eixo, em confronto, no território europeu. Raimundo chegou a participar da tomada de Monte Castelo. Antes, estando em Palermo, conheceu Anita. Eles se amaram, nasceu Giovani.
                   Já no Brasil, em 1945, após o célebre “tratado de São Francisco”, mandou dinheiro. Anita e o bambino vieram para o Brasil.
Raimundo foi buscar a amada e o filho, no cais do porto. Permaneceram, durante três dias na Capital do Estado, visitaram os pontos de destaque e, finalmente, se endereçaram à fazenda, localizada no Bairro do Pantaleão, no município de Amparo. Quando chegaram à propriedade, seus pais os esperavam, em ritual latino de festa, um jantar, no qual não faltavam deliciosas iguarias e o aroma dos assados chegava à sala de visitas, cadeiras e canapé de palhinha, num convite para rápido descanso e a mesa, onde as garrafas de vinho importado da Itália, compunham o evento.
                   Quando o casal adentrou a varanda, um tremor subiu pela espinha dorsal do abastado fazendeiro.
                   Anita era bela, cabelos loiros, doirados, rosto e corpo bem feitos, olhos claros e cismadores. Giussepe viajou no tempo, atirou seu pensamento ao quadro da despedida, em Nápolis. Recordou Maria, em seu conjunto e harmonia. Ponderou sobre a traição e a nora era a mãe, ali presente. Acabou a recepção. A cena foi dolorosa. Anita era, desgraçadamente, filha de Maria e, naquele encontro constrangedor, confessa ao companheiro, pai de seu filho, a história narrada por sua mãe.
                   Giussepe se recolhe amargurado ao quarto bem mobiliado. Tonha serve o jantar e Raimundo, sentado
numa cadeira, lá num dos cantos, perde a palavra. Começa a pensar que, também, traíra o pai.
                   - Íamos deixando de ponderar sobre as duas pedras. Uma tempestade sem precedentes estrapola as águas do rio, as duas pedras são atiradas ao fundo e se distanciam, perdem o contato, não mais conversam, senão telepaticamente. Passado o tormento, uma draga suga a areia e as duas pedras se abraçam a caminho da construção de enorme edifício. Integram o alicerce, um mesmo concreto. Nunca mais se separam.  Essa força superior, a nos conduzir implacavelmente e uns a entendem como o destino, as conjuga e, ali permanecem desafiando os séculos.
                   Tonha, mulher sem leitura, descendia de escravos, guardando, na memória das células, as desventuras trazidas das costas africanas. Contudo, de alma nobre, relembrava as cerimônias de Xangô e do Condomblé, razava, à noite, com seu terço puído, contemplava, nas estrelas, suas amargas origens. Amava Giussepe e seus filhos. Olhando os olhinhos de Giovani, começou a amá-lo, também. Figura inocente, cândida. Quando este chorava, corria à cozinha, trazendo à mãe, vinda do outro lado do oceano, um chazinho mágico e a criança passou a sorrir para ela, num doce sorriso, devolvendo-lhe uma mensagem de paz.
                   O clima, o relacionamento, na fazenda, passou a ser tenso e insuportável. Contudo, as palavras
generosas, ditas à noite ao marido, foram calando fundo e seu coração a se abrandar. Giussepe já carregava seu neto e da indigitada ex-esposa, que o traíra em sua própria terra natal. Passou a conversar com a nora, em breves trocas de palavras.
                   Foi quando, numa noite de Primavera, próximos ao lampião de gás, Anita entregou ao sogro uma longa carta, escondida até então, na qual Maria pedia perdão ao ex-marido. Dizia, “eu estava exposta a mais terrível miséria. Armando me procurou e socorreu nossos filhos. Deu-lhes alimento e trabalhava numa forja, dela provindo o sustento de todos. Todavia, nunca deixei de lhe amar. Na escuridão de minhas noites, sofri o refrigério. Nossos filhos se casaram e nos deram netos, venha conhecê-los”.   Lágrimas vieram das profundezas da alma do bom batalhador de bronze.
                   Eis que, certa manhã, confidencia à família. Iria à Itália conhecer seus netos, levaria a Tonha, sua devotada companheira. Partiram num navio, não naquele bastimento, que viera, entretanto, em confortável transatlântico. Cruzaram o oceano. Tudo lhe era novidade e o companheiro, carinhoso, explicava coisas sabidas e esta, perplexa, agradecia à Iamanjá, por lhe proporcionar tanto. Desde sua chegada à Península Itálica, Tonha foi adquirindo, com suas parcas reservas, lembranças e, também, ao pequenino Giovani, o qual já tanto amava, como aos demais familiares.
Quando chegam a Palermo, um denso nevoeiro cobria os céus. O coração de Giusssepie se aperta, iria ao encontro de sua família. E a Maria?  “Bruta béstia, traidora, repugnante”. Caía a tarde, atravessam uma viela e se dirigem ao local, que um dia deixara. Um pano preto, na porta, os surpreende. Identifica, de pronto, seus filhos, que o abraçam, com infinda ternura.
                   Ali repousa o cadáver de Maria. Tem um rosário nas mãos superpostas. Algumas flores coloridas, ornam o esquife.
                   Num guarda-louças, envelhecido pelo tempo, destaca-se uma fotografia antiga. Nela, Giussepi, Maria e os filhos. Segundo seus filhos, nunca saíra dali. Armando os respeitara e já havia anos, falecera.
                   Os filhos choraram, chorou a Tonha, debulhou-se em lágrimas, Giussepe. Uma tristeza oceânica os envolve, até o instante quando levaram à necrópole, a falecida.
                   Giussepie e Tonha visitaram a todos os parentes. Três meses passados, todos vieram para o Brasil. A fazenda tinha um longo território e daria para abrigar patriarcal família.
                   Agora, Giovani e os parentes, de sua idade, passeiam, a cavalo pela herdade. Consagrou-se uma família muito respeitada.
                   Veio o padre, Giussepe e Tonha se casaram.. Os padrinhos foram todos os seus filhos e netos, da Itália e do Brasil, também, a nora. Houve muita festa, assados e vinho.
                   Como as pedras, sedimentaram uma convivência para a posteridade.
                   Com respeito mútuo, até as pedras se entendem!... Por que não os humanos?

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