quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

CONTOS CONTINUAÇÃO

 RENEMBRANÇAS

                   Desde a concepção, transitamos. O tempo não passa, passamos nós. Compete-nos seu trajeto. Eis a existência. Ao seu término, em íngreme descida, a análise.
                   Guardo, da infância, sensacionais recordações. Sei que nasci nas montanhas. Memoráveis manhãs, dias felizes, tardes amenas e tranquilas madrugadas.
                   Aos meus três anos de idade, viemos morar em Serra Negra, a Cidade da Saúde. Aos cinco, nos devolvemos para a herdade de meu avô, fazendas de café, plantadas nas montanhas, no Bairro dos Costa, formadas por ele, que veio de São José dos Campos, em seus dezoito anos de juventude.

1. POR  QUE?

(Aos eflúvios do amor, a imagem do ser amado emerge das sombras ou se materializam no alvo algodão das nuvens, que ornam o azul imenso da abóbada celeste.)

                   Por quê? Nunca, jamais saberei!... Contudo, aconteceu. Começo de outubro, início da Primavera. Importa-me, isto é, tive a impressão de curiosa visita. Aninha chegou sem que a esperasse. Fazia algum tempo, não me fixara em sua lembrança.
                   Devaneio, certamente...
                   - Apenas, percebi o ruído leve da maçaneta, impressão de que a porta do quarto se abrira e ela surgiu, em plena madrugada. Cabelos negros, uma mecha branca, contraste. Suas
feições eram as mesmas de outrora. Guardava o semblante sereno. Figura angelical.
                   Fixou o olhar em meus olhos. Perplexo, estava acordado, contemplei-a em sublime plenitude. Anestesiado, permaneci em êxtase. Era aquela que amara aos nove anos de idade, como se venera uma só vez, ao longo do curso da existência.
                   Seu ABC, sua história:
                   - Nascera Aninha no Hospital “Santa Rosa de Lima”. Filha de um casal de colonos de meu avô. Sua mãe morrera de tuberculose, logo em seguida ao parto. Fora criada pela Madre Helena, que dedicou seus demais anos de existência à delicada criaturinha.
                   Os simpatizantes da Superiora, davam-lhe ricos presentes, as mais belas bonecas, vestidinhos de fino gosto e outros objetos requintados. Embora, de semblante triste, era uma menina de aparência feliz. De pouca fala, porém, sua voz era doce, de maciez aveludada.
                   Costumava passar as férias escolares em nossa fazenda. Foi numa delas, a tarde caía cálida. Logo após o banho, fomos em direção à porteira de entrada, quando lhe dei um beijo no rostinho moreno-claro, rosado. Retribuiu, carinhosamente.
                   Minha mãe nos espreitava, pela janela da sala de visitas, do velho e austero casarão, de forma retangular, que lembrava um navio ancorado no porto. No dia seguinte, por previdência, ou precaução materna, Aninha foi levada no mesmo trole, que a trouxera, para o Hospital. Permaneceram, apenas, saudades não superadas. O tempo não conseguiu apagá-las.
Fomos, passado algum tempo, “semi-internos” no Externato “Sagrada Família”, quando frequentamos a quarta série do Curso Primário, no período mais feliz de minha existência. Fazíamos, em parceria, nossas tarefas. Brincávamos, durante o recreio, quando, tomados de paixão, proferíamos palavras, somente para nossos ouvidos. Como nos sentássemos próximos, na sala de aula, sendo eu mais velho um ano, procurava socorrê-la, quanto o necessário. Dona Bety, nossa professora e namorada de meu tio, João Pires Filho, era a fada-madrinha. Protegia-nos e estimulava nosso relacionamento, de infantil carinho. Jamais nos repreendeu, não obstante fosse um Estabelecimento de religiosas. Em reiteradas oportunidades, nos encontrávamos na casa de Dona Tina, mãe da nossa professora. Principalmente, aos sábados, dia da celebração de casamentos, quando havia doces. Era na residência e Cartório Civil do Sr. Bila.
                   Guardo cópia reprográfica da fotografia de nossa formatura, data em que nos separamos, como um pesadelo.
                   Já na idade adulta, quando exercendo o magistério em Campos do Jordão, visitei-a, reiteradas vezes, num Sanatório. Estava enferma.
                   Passados muitos anos, encontrava-me na confortável residência de Lindóia, quando sonhei com Aninha. Nesse encontro onírico, jantávamos num restaurante da rua da Consolação, em São Paulo. Após a refeição, em carinhos, dançávamos. Logo após, enquanto pagava as despesas, ela desapareceu. Eis que, soou a campainha do telefone. Era para mim, quando me disse: “seu veículo está no portão do Cemitério da Consolação”.
Acordei, em estado de pânico. Revelei o acontecido à minha esposa de plantão. No dia seguinte, narrei os curiosos fatos ao meu Delegado de Ensino, em Amparo. O austero educador me aconselhou a procurasse. Disse-me, pudesse ela necessitar de algo. Voltei à cidade de Lindóia, convidei minha então mulher e viemos a Serra Negra, procurar Rosinha, nossa colega de Externato, quando ela me afirmou que Aninha era enfermeira do Hospital “Santa Rosa de Lima”, onde nascera e se criara. Fui à Padaria Santos, comprei tabletes de chocolate e nos dirigimos ao nosocômio. À portaria, solicitei que a chamassem e ela veio com seus olhos e cabelos negros, mecha branca, rosto afilado, feições tristes, retrato descritivo da visão noturna. Vivi a mais bela e sensacional das emoções. Abracei-a com o mesmo carinho de seus oito anos de idade e inocência. Entreguei-lhe o pacote, quando me disse: ”você se lembrou do que gosto?”
                   Sugeri que passasse os domingos, de folga, em nossa residência. Não discordou, mas nunca compareceu. Tinha formação monástica.
                   Decorreram outros tantos anos. Certa feita, visitava um pensionato de freiras, nas proximidades do Hotel Biasi, antigo Cassino, quando me deparei com Aninha. Serena e encantadora, dirigiu-se ao seu quarto e voltou exibindo um exemplar de Serra Negra, Seu Povo e Suas Epopéias, de minha autoria. Disse-me, apenas: “tenho-o sobre meu criado-mudo, leio-o todas as noites ou quando busco recordar”. Nenhuma circunstância foi palco de tanta demonstração de amor. Reeditei
meu ósculo, nas proximidades e presença da porteira. Foi nosso derradeiro encontro. Anos passados, quando estive ausente de Serra Negra, soube que sucumbira.
                   Vivi muitos amores, nenhum deles teve o elastério, a marca, indelével, profunda do meu primeiro encontro com a felicidade. A essência do Primo Basílio, de Eça de Queirós, é que: “o amor tem a duração de um único instante”. Meu momento foi aos nove anos de idade, porque somente restou a mais feliz das lembranças. Átomo de felicidade infinita!...
                   Aninha foi, inquestionavelmente, meu primeiro, insuperável e fantástico amor!... Quando digito estes sucessos, altas horas, madrugada de primeiro de abril, dia da mentira, quinta-feira santa, tenho certeza, redijo meu confiteor, poderei findar meus dias, indo procurá-la, além do infinito, noutro plano espiritual.
2.  MINHA DIVINA MESTRA
Profa. Amélia Massaro

                                              
Os deuses são eternos, permanentes
detentores do amor, jóias sagradas,
que atravessam noites, madrugadas,
pregando fé, lançando só sementes

de caridade, poemas candentes,                                             
iluminando vielas e estradas,
constelações de estrelas encantadas,
milagres, preces, quais piras ardentes.

Assim, minha primeira santa  mestra,
rosto rosado, belo, sorridente,
foi uma deusa, poema, orquestra,

recordação, saudade veemente.
Eis o perfil de minha linda mestra,
que permitiu que a gente fosse gente.

                   Testemunho: quando aluno de Dona Amélia Massaro, na escolinha de roça do Bairro das Tabaranas de Baixo, em Serra Negra, Estado de São Paulo, onde aprendi as primeiras letras, certa tarde, ao término das aulas, disse-me que deveria transmitir ao meu pai o recado de que desejava conversar com ele. Embora pressentindo fosse narrar alguma peraltice minha, dei a mensagem.
                   No dia seguinte, ouvi a conversa:
                   - Olympio, suas filhas são muito inteligentes e dedicadas. Deverão prosseguir nos estudos.
                   - A senhora sabe que sou pobre, não tenho recursos para mantê-las no colégio.
                   Meu pai era administrador das Fazenda “São Sebastião” e “São Pedro”, de meu avô. Ganhava duzentos e cinquenta mil réis por mês, que, em virtude da crise do café, não estava recebendo.
- Mas você tem umas economias, gaste-as!
                   - E após?
                   - Deus proverá!...
                   A primeira noite, meus pais atravessaram conversando. Quando, na subsequência, nos devolvemos à escola, meu genitor, dirigindo-se à minha mestra, disse-lhe: “A senhora deve ser um anjo- mensageiro, vou arriscar”..
                   Dona Amélia mudou o horário de nossas aulas. Eram das onze às quinze horas. Passaram a ter início às oito. À tarde, gratuitamente, se dedicou ao preparo de minhas irmãs Aparecida e Amélia. Foram, em seguida para o Colégio de Jardinópolis e as Fazendas foram a leilão. Meu pai arrematou-as, correndo sérios riscos de não poder pagar a hipoteca e irmos para a estrada. Entretanto, no ano seguinte, o café teve seu preço elevado de dez mil réis a arroba, para trinta e três. Pagas as dívidas, meu pai ficou rico. Daí, éramos seis filhos no Colégio interno. Quatro irmãs, no Colégio “Progresso Campineiro”. Meu irmão Benedito e eu, no Colégio Diocesano “Santa Maria”, de Campinas, quando fui colega de João Batista Belinazo, hoje, “Leo Batista” da Globo. Ocupamos a mesma carteira dupla.
Por consequência, todos os descendentes de meus pais vão se formando. Não há nenhum deles sem estudos. Somos vinte e cinco advogados. Meu irmão, José é Juiz Federal, em Cuiabá.
                   Meu filho mais velho, que é Desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, mantém, em Ponta Grossa, quinze Cursos de nível superior, CESCAGE, inclusive, um de Direito, no qual fui professor e coordenei o Escritório Jurídico; outros de Odontologia, Fisioterapia, etc..., num total de mais de quatro mil alunos, onde trabalham mais de quinhentos funcionários, inúmeros, de alta categoria.
                   Certamente, Dona Amélia Massaro foi um anjo-mensageiro de Deus!...
                   Tive notáveis preceptores, mesmo na Universidade de Coimbra, em Portugal. Nenhum deles se igualou à minha tão amada e santa mestra!
3. AS NUVENS E AS SOMBRAS


Em viagem sobre as nuvens, voltando de Paris, Londres ou Lisboa, entrando em território brasileiro, suas sombras me parecem lagos projetados. Não o é sem nostalgia que os contemplo. Uma saudade imensa de tudo o que ficou enclausurado em meu mundo interior. As nuvens, são obstáculos aos raios do Sol; a idade, à existência.
                   De tudo e todos, fica a pálida e difusa recordação.
                   Entretanto, é gratificante recordar os momentos marcantes de nossa trajetória, de certa forma, obscura.
                   Trago comigo as marcas de uma infância feliz, lá nas fazendas de meu progenitor. Tinha seis anos de idade, quando meus avós, vez ou outra, iam visitar sua herdade. Chico Ramos,
como o chamavam, era, legitimamente, Francisco Pinto da Cunha, figura nobre e marcante, liberal, mesmo em seus últimos tempos. Chegara jovem às nossas paragens, aos dezoito anos de idade. Viera para ficar. Anos após fora buscar Nhá Amélia, com treze anos de idade, em São José dos Campos. Casaram-se pela conveniência da época, ambos de famílias importantes. Ela, bisneta do Bispo, deputado e presidente da Província de São Paulo; ele, neto de Leonardo Pinto da Cunha, Juiz de Paz, respeitado por vasto conhecimento de questões possessórias. Curioso, naquela época, os casamentos eram arranjos das famílias. Entretanto, ambos se amaram, tinham, em comum, recíproco ciúmes e, mais ainda, eram fisicamente de traços de rara beleza.
Alegra-me e, torna-se de muitas recordações, falar sobre aquela época, cuja memória me é inaugural na existência. Sei, contudo, que, meus avós, me fascinavam. Quando não estava a acariciar as mãos da anciã, ia, pelo terreiro de secar café, servindo de anteparo ao meu avô e padrinho. Levava-lhe uma cadeira de palhinha. Ali sentado com seu sobretudo, bengala e chapéu preto; recebia, pela manhã, os mesmos raios solares, dos quais se aquecera pela juventude e vida adulta. Durante mais de quarenta anos, fora líder político no Município de Serra Negra, que abrangia Lindóia e Águas de Lindóia, então, Água Quente, fundada pelo Dr. Francisco Tozzi.
                   Competia-me prestar contas ao meu progenitor. Bem, recordo-me, numa manhã subsequente à chegada de meus avós, logo pela manhã, meu pai havia ido à cidade, recomendando-me que hospedasse seu pai. Convidei-o me acompanhasse e fomos ao paiol de milho, quando lhe prestei contas da colheita, de quantos carros do cereal; percorremos as tulhas abarrotadas de café, falei de quantas arrobas; fomos ver o gado, disse-lhe das novas crias, enfim, coloquei-o a par da situação. Quando, no dia seguinte, meu pai o convidou para prestação de contas, ele falou, em sua forma solene de dizer: “meu neto já me relatou o que deveria saber”. Aquela frase valeu, em todo o curso de minha existência, muito mais que os discursos por ocasião de minhas formaturas. Ouvi elogios de grandes mestres em Coimbra, nenhum deles teve o vigor, a fluência do atestado de competência de meu ícone, aquela figura nobre, que viria a ser objeto de minhas vibrantes crônicas, em jornais ou ditas em discursos revestidos de sinceridade e ternura. Guardo de meu progenitor uma recordação tão forte, que não se apagou, em meu caminhar pelo tempo.
·                         Aos dezoito anos de idade meu pai foi picado por serpente venenosa. Os recursos da medicina eram parcos. Aplicava-se um tição no local.    Formou-se, em consequência, uma ferida. Certa manhã, impedido de caminhar, tinha a perna suspensa. Dr. Francisco Tozzi já residia em Água Quente, hoje Águas de Lindóia. De trole, passava pela Fazenda “São Sebastião” à caminho de Serra Negra. Vendo meu pai naquele estado, disse: “quando voltar, levarei seu filho. Em vinte dias estará curado. As águas são milagrosas”. Passado o período, devolveu meu pai são e salvo.
Sabedor das propriedades das águas, meu avô, então, Prefeito do Município de Serra Negra, que abrangia aquelas paragens, abriu uma estrada de acesso ao local. Foi processado, sob o argumento de que favorecera um amigo.
·                         Nada lhe aconteceu, apenas dera oportunidade para antecipar tantas outras curas. Um magnífico marco de sua administração profícua e honrada.
4. UM FATO TRANSCENDENTE


                   Numa das visitas, não completara seis anos, quando, numa tarde, chegaram meus avós, de trole, acompanhados da Mélica, neta criada por eles.
                   O casarão da fazenda, de forma quase retangular, lembrava um navio ancorado no porto. Havia sido construído com muito gosto, nos tempos áureos do café. Fora palco e abrigo de muitas festas, reuniões de políticos, capitaneados por meu avô. Tinha ao seu lado direito, para quem chegava à porteira, ampla capela, denominada de São Sebastião, certamente, recordando o filho Sebastião, que fora vítima de um acidente, em tenra idade. Minhas tias o empurravam num carrinho (de caixão de querosene), com quatro rodas de madeira, quando rolou barranco abaixo. Era o ano de 1898, seus restos mortais encontram-se na via de entrada do Cemitério da Saudade, num túmulo de mármore branco, onde, passados cinquenta e sete anos, foi enterrado meu filho José Maria, de cujo relato me reservo, à outra parte destas alegres e tristes recordações, porque nas palavras do notável conterrâneo Dr. Dalmo de Abreu Dallari, “há alegrias tristes e tristezas alegres”.
                   Observei a chegada de meus avós e da prima, desde o aparecimento do trole lá na encruzilhada, como sempre procedi nessa particular solenidade, eis que era acontecimento esperado com ansiedade.
Quando a noite desceu com seu manto negro, encerrando o “café novo”, plantado pelo meu pai, direção Sul; montanhas do setor Norte e distâncias de Água Quente; pelo Leste, Mato das Lavras e a Oeste, Bairro dos Fróis, encimado pela Fazenda “Águas Claras”, houve conversa na sala de jantar, chamada por nós impropriamente, varanda. Após, fomos todos nos deitar e dormir.
                   Da “varanda” para a sala de entrada, denominada dos colonos, um corredor com duas portas basculantes, permanentemente abertas; uma porta dupla de madeira para a vasta cozinha e as que davam para o quarto grande e mais dois menores, onde se alojaram meus avós e a Mélica. Eu e meu irmão Benedito, que faleceu em fevereiro de dois mil e sete, habitávamos o “quarto grande”, outrora de meus avós.
                   Bem na direção da porta aberta, estava um guarda-comida, nele, entre xícaras, o açucareiro e um bule, cuja tampa perdera a solda. Pela madrugada, pude notar, durante largo espaço de tempo, a presença de uma mulher com cerca de trinta anos de idade, olhos grandes, cabelos negros, em camisola branca, que se direcionava para o quarto, onde dormia a Mélica, sempre tocando o bule, tirando-lhe e colocando a tampa.
                   Aquela presença causara-me espécie. Não notara a chegada daquela mulher de feições delicadas e marcantes.
                   Na manhã seguinte, perguntei à Aparecida, minha irmã mais velha, quais as pessoas que haviam chegado na tarde anterior. Respondeu-me: “o vovô, a vovó e a Mélica”.
                   - Não veio uma mulher de olhos negros e grandes?
Cida tirou de uma canastra uma caixa de fotografias. Instou-me à procura de alguma fotografia da interrogação.
                   Lá pela vigésima, encontrei-a. -É esta mesmo que vi, durante a madrugada!...
                   -Você viu a tia Benedita!...  -Então, onde está ela? Era mãe da Mélica e morreu alguns dias após o nascimento das filhas. Eram gêmeas. Somente sobreviveu a Mélica.
                   Recordo-me, voltando no tempo, que andava pelos cinco anos de idade, quando retornamos à fazenda. Havíamos morado uns tempos em Serra Negra, que chamávamos cidade. Fui, então, matriculado no Jardim da Infância do Externato “Sagrada Família”, quando tive por colegas o Tota Amábile e o Carlos Riele, meus primeiros amigos. Nós usávamos um aventalzinho, razão pela qual um meu parente, chamou-me “mulherzinha”. Dispunha de minha estreante bolsa de madeira. Quebrei-a em sua “cara”, que guardei pelos tempos como feição covarde. Madre Aurora deu-me três varadas de marmelo, às quais agradeci trinta e três anos passados, exercendo a inspetoria escolar, quando fui paraninfo dos formandos, e dentre eles, o filho do primo malfeitor, era um dos alunos, diga-se de passagem, um diplomata, desde a primeira infância. Prestamos, naquela oportunidade, uma homenagem à madre Aurora, que completava sessenta anos de hábito, estava em gozo da aposentadoria compulsória.
                   Já de volta, quando cheguei à fazenda, meu pai me arranjou um companheirinho, um ano ou dois mais velho que eu, de nome Alcides, filho da cozinheira Maria, ex-esposa do Paulino, descendente de escravos, que fora criado como irmão de meu tio Valêncio, de sua idade.. Maria, a negra, era convivente do Torquato, branco, nosso colono. O Alcides era de ímpar habilidade manual, ensinou-me a construir gaiolas de imbaúba e taquara, quando montamos duas gaiolas e um alçapão. Durante cerca de dois anos caçamos papa-capins e tico-ticos, alegria frenética. Até que apareceu, pela segunda vez, um padre pregador de Missões e arrecadador de quantias para um Seminário, localizado na cidade de Rio Claro, Estado de São Paulo. Terminada a tarefa, indagou de meu pai se havia alguém amancebado na colônia, quando foi lembrado o caso do Torquato e Maria. Disse o pregador da palavra de Cristo que esse fato poderia trazer azar. Nem bem o desditoso se despedia, foi chamado o Torquato e despedido. Sua mudança coube num cargueiro: panos de colchões, um banquinho, traias da cozinha, objetos envelhecidos pelo tempo, com os quais Maria preparava a matula do companheiro, que a comia fria, no eito, porque o Alcides almoçava comigo. Antes que a mula transportasse a mudança, chegou o meu companheirinho de tantas façanhas e me disse: “toma a minha gaiolinha, alçapão e passarinho, não preciso de nada”. Meu amigo chorava, caiam pelo seu rosto trêmulo, umas lágrimas fortes. Ele tinha as feições humildes. Não vi as minhas, porém, foi a primeira revolta experimentada, que viria me influenciar ao longo da existência. Esclareça-se, a Maria do Torquato era a mesma que assava pedaços de frango caipira para abastecer o “cemitério de frangos” do missionário. Eis as razões porque, na condição de advogado, lutei e luto tanto contra as injustiças perpetradas. Consegui por dois juízes para correr, em prejuízo estremo de minha banca profissional, reflexo dos fatos
infantis. Fiz de minha pena, na imprensa, a espada desnuda, que enfrentou os poderosos corruptos, temerosos de minha audácia.
5. CAVALINHO DE TAQUARA

                   O Zezinho da Dita Fróis, Tonico da Rosária e outros de nossa idade, formavam o grupo, cuja montaria era constituída de alguns gomos de bambu e uma tira de pano. Levávamos o cavalo nas costas, subíamos o morro do Cruzeiro, dávamos meia volta, descendo em disparada. Chegando numa curvinha fechada, coberta de pedregulho, muitas das vezes, esfolávamos os joelhos. Sangrando, sem patifaria, prosseguíamos desabalados. Antes da jornada, perguntava o Tonico: “onde imo? Era sempre assim, crianças descalças, coradas e felizes. Tive tantos cavalos de verdade, até o Diamante, de Fera Ferida, que levava Linda Inês encontrar-se com Flamel. Nem o cavalo, que fora da Globo, deu-me tantas alegrias, quanto os de taquara.
                   Éramos muitos garotos da mesma idade. Gostávamos do jogo de bola. Compramos uma de borracha, cada um contribuiu com um pouco. De um tostão a quinhentos réis. Na Escola Mista das Tabaranas de Baixo, a bola era feita de meia de mulher, com enchimento de trapos.
Quarenta famílias trabalhavam na fazenda. Os colonos eram pessoas dóceis, respeitadoras. Viviam em harmonia. Suas esposas eram corretas, mulheres honestas criando seus filhos. Nesse ambiente, éramos muito felizes. Somente os filhos de mulheres corretas, conhecem a felicidade.
                   As mocinhas não conheciam batom e passavam papel de seda para encarnar seus rostos. Eram bonitas, cheias de existência. Casavam-se cedo, belos romances, lindos casos de amor.
                   Os filhos dos colonos não iam à escola, exceto o José de Lourdes, filho do Dito Leite, que ia a pé, enquanto íamos de carrinho, uma charrete de rodas de ferro, cabriolé.
                   Era o período da Segunda Guerra Mundial. Havia animosidade entre os filhos de brasileiros e os descendentes de italianos. Benedito, Cássio,  Edésio de Almeida e o José de Lourdes... Éramos cinco brasileiros, mais de trinta “italianinhos”. Sempre em desvantagem.
Um dia, o Cássio faltou, também, meu saudoso irmão Benedito. O Edésio não era de briga, quando a coisa apertava, subia numa árvore mais próxima. O Bruno ameaçou, hoje, vocês apanham. – Indaguei ao José de Lourdes se estava com sua faquinha enferrujada. Disse que sim. Ao final dos estudos, chegamos à encruzilhada. Formaram uma roda, em torno do José de Lourdes e minha infantil pessoa. O José de Lourdes descreveu um círculo, com a ponta da faca, no pedregulho, aos nossos pés. Meu punhal tinha o cabo de prata. Partimos sobre a chusma covarde, que fugia na ligeireza dos pés. Corremos uns duzentos metros, quando, numa curva, as pedras vinham em nossa direção.
Uma delas atingiu minha testa. Em hemorragia, cai. Fui recolhido ao banheiro da residência da Dona Amélia, quando dona Maria, sua cunhada, procedeu a um oportuno curativo, com o estancamento do sangue.
                   Saí da Escola, fui para o Externato “Sagrada Família” frequentar a quarta série.
                   Hoje, entendo o quanto a colônia italiana foi e é importante para o nosso país. E tenho consciência do doce charme das italianinhas, uma doçura de carinhos.

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