quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

A PALAVRA

Escrita ou falada é espada. Abre chagas ou defende a honra.  Pode gerar feridas, quando injusta. Porém, ao pugnar pelo inalienável interesse comum, é medida heróica e saneadora.
                   Luís Gonzaga Pinto da Gama, um dos personagens mais admiráveis e fascinantes das epopéias da Libertação dos Escravos nasceu, em 1830, em Salvador, filho da união informal de uma africana livre, natural da Costa da Mina, do lindo nome Luíza Mahin, da qual sempre falou com orgulho, e de um branco com fumos de nobreza, cujo nome nunca dera a conhecer. Luíza Mahin, na Bahia, envolvera-se em várias insurreições de escravos, acabou deportada para o Rio de Janeiro, jamais a reveria. O pai, dado ao jogo, esbanjara a fortuna, que houvera de uma tia. Viu-se pobre, levou o filho de dez anos ao cais do porto. Ali estava ancorado o patacho Saraiva. O filho apercebeu o conteúdo da conversa em surdina entre o pai e determinado senhor, a bordo da embarcação. Então exclamou: - O senhor me vendeu!
                    De forma alucinantemente cruel, o pai vendera o filho como escravo. Luís Gama iniciava sua carreira solo na vida. Ali foi entregue a Vieira, comerciante de velas na rua da Candelária. Este o vendeu a Antônio Pereira Cardoso, que rumou, com um lote de escravos, a São Paulo. Chegando a Santos, enveredaram pelo Planalto Paulista, para a região de Jundiaí e Campinas. Cardoso ia oferecendo, aos fazendeiros locais, seu rico lote. Vendeu todos, exceto dois, um deles o menino. Ninguém o quis, mesmo de graça. Encalhado, Cardoso o colocou ao seu próprio serviço. O menino aprendera a lavar, engomar, costurar, consertar sapatos e servir de copeiro.
                   Até que um dia Cardoso hospedara um jovem do interior, Antônio Rodrigues do Prado Júnior. Eles ficaram amigos, o jovem estudante de direito o ensinou a ler.
                   Fugiu da casa do dono, conseguiu provar que, sendo nascido de mulher livre, livre era também. Obteve emprego público na Secretaria de Polícia. Embora sem recursos para escolaridade regular, estudou direito e conseguiu licença para atuar no foro. A literatura foi seu passaporte para subir na pirâmide social. O ex-escravo, ao lado de pessoas ilustres, foi fundador da loja maçônica América e do Partido Republicano Paulista. Eram pessoas de suas relações, Martinho Prado Júnior, o Martinico, José Bonifácio, o Moço, Américo Brsiliense, Lúcio e Salvador de Mendonça, Américo e Bernardino de Campos, Rui Barbosa e Raul Pompéia.
                   Dedicou-se à causa da libertação dos escravos, usou e abusou da esquecida lei de 1831, que declarou ilegal o tráfico de escravos, alegando que todos os africanos aportados no Brasil, após aquela lei, haviam sido escravizados ilegalmente.
                   Em 1880, aos 50 anos começa a fraquejar, a diabetes o venceu. Morreu em 24 de agosto de 1882. Seu enterro foi o mais concorrido, no século XIX. Viveu e morreu pobre.
                   Eis a história de um dos maiores vultos da História, o menino que foi vendido pelo próprio pai, como escravo e foi o maior libertador de escravos, na Justiça, mais de mil.

OS GARANHÕES NA IMPERIAL CIDADE

O Monsenhor Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, imediato de Dom Mateus de Abreu Pereira, IV bispo da Diocese de São Paulo, de quem era sobrinho, em 29 de agosto de 1822, perde Domitila de Castro Canto e Melo para Pedro de Alcântara Francisco Antonio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança Bourbon. Quem era ele? O príncipe regente D. Pedro, rapazola de vinte e três anos de idade, um ano mais novo que a mulher mais desejada de toda a Província de São Paulo.
         Contava com a idade do príncipe, seu auxiliar, o alferes Francisco de Castro Canto e Melo, irmão de Domitila, que o acompanhava naquela eventualidade.
            Naquele fatídico, para o Monsenhor, 29 de agosto de 1822, D. Pedro e Domitila se ajuntam pela primeira vez. Mais tarde, numa carta, que escreve à amante, em 31 de agosto de 1828, rememora aqueles sucessos.
         D. Pedro era um femeeiro essencial reiterado, tipo permanentemente abrasado pela sofreguidão sexual.
        Quem observa a Marquesa de Santos, em óleo de Francisco Pedro do Amaral, lê em seus olhos o superlativo dos desejos da carne. E ela, naquela data, exercita a sua “coisa” e domina o futuro Imperador, que mais tarde lhe envia, de lembrança, um punhado dos próprios pêlos pubianos.
         Quando ela aciona o seu relógio, marcador dos segundos e minutos de delírios, estes foram tantos e com tão diversos, o Monsenhor perde sua alcova. Porém, mais tarde, a pedido dela, o Imperador, o indica ao Papa e se torna o V Bispo da Diocese de São Paulo, Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade. Perdeu o relógio febril da carne, porém, guardou um outro, de bolso, que lhe havia ganho como lembrança e, segundo Carlos Lacerda, descendente de Maria Emília Gonçalves de Andrade, sobrinha de um dos dois mulherengos, em sua obra “A Casa de Meu Avô”, passou a pertencer à uma sua prima, que residiu na Praça da República, em São Paulo.

PENSAMENTO DO DIA



PENSAMENTO DO DIA

                                             (SPCunha)

            EMBORA, SILÊNCIO SEJA O MAIS SÁBIO E ELOQUENTE DOS DISCURSOS, É COGENTE RESSURJAMOS, DIARIAMENTE, DAS CINZAS E ESTAS RECUBRAM, FOSSiLIZEM, PETRIFIQUEM O ÓDIO E A INVEJA DE NOSSOS DETRATORES.

OS POMBOS DA PRAÇA



Certa manhã, adentrei à Padaria Serrana para tomar um pingado. Quando saía, o Martins, investigador aposentado, meu ex-aluno, disse-me que estava preocupado. Costumava tratar dos pombinhos, desses que evocam o Espírito Santo e que havia sido editada uma Lei Municipal proibindo o trato dos mesmos. Contou-me que deveria sair um decreto ou portaria, contendo as penalidades ao infrator.
                   Perguntou-me: qual deveria ser seu procedimento? Afirmei-lhe, prontamente, que os tratar era uma obrigação. Que, em tempos remotos, foram domesticados pelos asiáticos. Eles retroagiram, em seu instinto à procura de alimentos, cumprindo ao homem o dever de tratá-los. Ele prosseguiu em sua missão. Aconselhei-o a chegar mais cedo ao Jardim Público e distribuir  milho e pedaços de pão. Nas manhãs seguintes, estive em sua companhia. Os pombas sentavam-se em seus ombros.  Vi, várias vezes, um estava enfermo e vinha sobre uma de suas mãos, para que pudesse alimentá-lo, com a outra. Colocava-lhe o alimento dentro do bico.
                   Meu querido amigo Martins partiu para a eternidade, os pombos ficaram órfãos e a regulamentação foi entregue às calendas gregas.
                   Indagando das razões, pelas quais, os políticos não gostam dos pombos, um meu experimentado interlocutor disse que, poderia se dever pelo seu arrulho (1), entendido como: corrupto, corrupto, corrupto.
                   E os políticos odeiam ouvir este adjetivo!...

(1) canto do pombo. Fig. meiguice, ternura, carícia.


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

CONFITEOR I - FINAL

46. MEMÓRIAS DE 1969

emoções, que jamais dissipam ...


J. S. Fagundes Cunha – Doutor em Direito pela UFPR
Membro da Academia de Letras dos Campos Gerais
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
Diretor Geral da Escola Superior da Magistratura da América Latina

         Nasci em 1957, portanto, em 1969, contava 12 anos de idade.

         Quando ouvia o som do rádio, após a revolução de 1964, tremia, ao soar a música do Repórter Esso. Mal sabia que eu (thetano) trazia, em minha memória, figuras de imagens de 70 milhões de anos, mas isso é uma história para ser explicitada adiante.

         Meu pai é o primogênito de dez irmãos. De alguma forma, durante muitos anos, foi uma referência para os demais irmãos e irmãs.

         Vivíamos um momento singular. Após a vida modesta de professor e diretor de escola primária, trabalhava ele como advogado na Prefeitura Municipal de Diadema, coordenando a administração. Eram tempos de alegria, morávamos em Águas de Lindóia, um paraíso incrustado na Serra da Mantiqueira, em um vale e clima ameno, água maravilhosa, paisagem encantadora.

         Ele comprou um sítio, para mim, então, uma enorme fazenda, pouco mais de oito alqueires de sonhos, projetos descobertos e integração com a natureza. Dois lagos imensos, com carpas em abundância, onde passava horas a pescar. Um alambique, onde amarrei meu primeiro fogo, quando a destilada escorria ainda quente e com baixo teor alcoólico, mas com alto poder de embriagar.

         Caçar passarinhos, retirar de seus ninhos e criá-los com amor e dedicação, ao ponto de abrir a porta da gaiola e retornarem para a mesma, até que, naturalmente, aparecesse alguma sedutora fêmea e ela o fizesse acompanhar, era um dos prazeres, além de uma bicicleta nova, com a qual apostava corridas em uma avenida imensa, jogar bola, acompanhar a campanha do ALEC – Águas de Lindóia Esporte Clube, mas conhecido por amigos Leais Eternos Companheiros, campeão das estâncias hidrominerais de carona, sem dinheiro, conformavam um universo idílico.
         Foi o primeiro ano, quando deixei a pressão de também ser o primogênito e ter de ser o exemplo da família para todos os primos, primas e irmãos e Deus sabe lá o que mais ...
Minha mãe, como a de Mauro Rasi, utilizava as mesmas expressões. Eu e meu irmão José Olímpio, dois anos mais novo, saíamos pela manhã e retornávamos à noite, almoçando sabe-se lá onde e esfomeados, buscando um jantar, quando vinha a locução imperdoável de minha mãe: Galo, onde canta janta! De imediato, pensava que, um dia, teria minha casa e não mais suportaria tal humilhação. Besteira de uma criança, que não conseguia, sequer, entender a alegria, dela, ver os filhos livres, cheios de saúde, vivendo a vida em seu extremo de felicidade.
         Há uma cena singular, que expressa tal período de inocência, a ser quebrada com o incidente, mais adiante narrado.
         Era um domingo e meu pai me chamou para conversar no escritório. Ele, com a elegância de sempre, deitado no sofá, de chapéu, botas feitas à mão e exclusivas, perora: - Menino, sua mãe disse que está desesperada com você. Afirma que você não estuda, somente anda de bicicleta, pesca, joga bola e fica na rua. Enquanto ele falava, minha mãe estava escondida, por trás da porta, ouvindo a conversa.
         A imagem de meu pai de então, naquele escritório, que se me afigura imenso, era de um ícone de cultura e erudição. Estudou quatro anos de latim, interno no Colégio Diocesano “Santa Maria”, em Campinas, mais três no Curso Clássico, afeito à leitura dos clássicos e filósofos, dado a escrever e publicar seus artigos. A vasta biblioteca no escritório, com livros lindos e reluzentes, que pareciam jamais haver sido utilizados. Ciente de quantos discursos escreveu para políticos, enfim, era uma responsabilidade enorme para mim...

         Prossegue, ralha e afirma: - Sua mãe quer eu o interne no Colégio Diocesano, em Campinas.

         Ouço a respiração de alívio de minha mãe. Para ela estava certo, seria internado o filho que, até então, era um excelente aluno e, de repente, tornara-se um ser desconhecido.
         Ela sempre afirmava que bom filho era o Max Tadeu, filho de uma irmã de meu pai. Ele sim era educado, um menino fino, de bons modos, que comia moderadamente, à mesa, não respondia (sei lá o que isso significa ????), enquanto eu e meu irmão, éramos praticamente selvagens, sem modos adequados, comíamos rapidamente e, muitas vezes, com as mãos. Nos apresentávamos sempre sujos, de brincar na terra. Coitado do Max Tadeu, tínhamos verdadeiro ódio ao infeliz. Quantas surras, eu e meu irmão, demos nele por causa das comparações de minha mãe. Ele, sem irmãos, adorava ir para o sítio, conviver conosco e com a nossa liberdade, mas minha mãe, em suas comparações, obrigava-nos surrar o primo,

         Vem a proposta final de meu pai: - Você quer ir para o colégio ou ganhar um cavalo?
A resposta imediata: - Quero o cavalo. Se o senhor me internar, somente vai ter prejuízo. Eu fujo amanhã mesmo e volto para casa. Dá-me logo o cavalo.

         Minha mãe, na altura dos acontecimentos, passa a chorar e bradar: - Um filho que não estuda e um pai irresponsável. O que é que eu faço de minha vida e mais aquela lenga-lenga de mãe. – Como eu vou educar esse menino? Sem ela, talvez, não estudasse tanto e, com tanto afinco, no futuro.

         Sempre fui grato a ela. Ganhei uma égua e, de quebra, uma linda charrete.

         Entretanto, a recordação, que marcou profundamente meu ser, também, ocorreu em manhã de um domingo. Como disse, meu pai é o mais velho, de dez irmãos. Naquela manhã, saímos de carro, eu e o irmão caçula de meu pai, para abastecer o veículo. Ele iria viajar e fora até Águas de Lindóia para resolver umas questões. Passou a me narrar o que ocorria.

         Meu pai fora denunciado no SNI. Estava sendo investigado pela Aeronáutica, em Cumbica e seria interrogado no dia seguinte. Meu tio estava ali para discutir o que iriam fazer. Disse-me que outro irmão havia providenciado o dinheiro e que, se a ameaça de sumirem com meu pai, viesse a se consolidar, ele iria matar a pessoa, que denunciara meu pai e fugir para o exterior, Esclareceu, tudo estava acertado.

         Fiquei, inicialmente, perplexo. Tomei a responsabilidade, de pronto. Disse que eu iria junto matar a pessoa. Que, também, era o primogênito e tinha a responsabilidade para com a família, como sempre me fora ensinado. Uma força interior, intensa, veio com segurança e tranquilidade. Decidi participar da execução do delator.

         Meu tio serenou-me, disse-me que ficasse calmo, tudo seria efetivado, que eu era muito jovem para tamanha empreitada. Manifestou sua felicidade em constatar meu caráter. Meu pai não sumiu, não foi morto o delator. Sumiu minha inocência e morreu, em mim, um pouco e a beleza da vida.

         Eram anos de inocência, de pureza, tudo maculado pela ameaça de perder meu pai. Aquele que, quando chegava do trabalho, nos fins de semana, vindo de Diadema, era o alento de nossas vidas; aqueles pêssegos enormes, o pão sovado, tantos outros gestos de afeto e carinho, a certeza de que, no dia seguinte, por volta das quatro horas da madrugada, iríamos ver a aurora, juntos, a caminho do sítio, onde estavam todas as aventuras, que uma criança podia sonhar. Como poderiam querer sumir ou matar meu pai, era algo que eu não conseguira compreender.
Meu pai abandonou tudo e fomos morar em Cajuru, praticamente, na clandestinidade. Em 1970, meu irmão soltou um rojão, quando a Itália marcou um gol e meu pai o pediu-lhe que não mais o fizesse, pois, estávamos escondidos naquele lugar, com medo de que algo acontecesse conosco e que o rojão poderia causar imensos problemas.

         Em uma palestra, que proferi em Franca, na UNESP, em setembro de 2.002, quando discorria a respeito de Direitos Humanos, tive a oportunidade de dizer sobre nossa vida em Cajuru.

         Meu pai nunca voltou a ser o mesmo. Foi-se aquela alegria vivaz de seu semblante e restou impressa, em sua alma, a sensação de que, em algum momento, poderá ser alvejado. Suas idéias, vez por outra, estão confusas, como se, ainda hoje, estivesse sob ameaça de não poder rever seus filhos... Vive afastado de todos, em um exílio voluntário, desnecessário.

         O tio, que iria liquidar o delator, foi o único vereador pelo PT, em Indaiatuba, naquela gestão de seis anos, presidente da Câmara, nos dois primeiros e dois últimos anos. O tio financiador, hoje é Juiz Federal, em Cuiabá, após se aposentar como Procurador do Estado de São Paulo.

         Eu sou, ainda, depois de tantos bancos escolares de graduação, especialização, mestrado, doutorado, cursos e mais cursos, e mais de vinte anos de terapia, apenas, aquela criança assustada, à procura de um lar seguro, onde irei morar, serei amado e querido, desejoso de uma família, e ainda com o sincero desejo de matar, em mim, aquele que delatou (matou) meu pai.


47. RECORDAÇÕES


                   Recebi, na última sexta-feira, dia 29 de maio de 2.009, à tardinha, a visita de meu filho José Sebastião Fagundes Cunha. Veio, em sua companhia, uma jovem, de rara beleza. Na manhã seguinte, entregou-me as Memórias, que transcrevo, belíssima e pungente peça literária, certamente, a melhor, que já escreveu. Sensibilizou-me extraordinariamente.

                   Vem de ocorrer que são 20:00 horas do dia 1º de junho, segunda-feira subsequente à visita. Há exatamente cinquenta e quatro anos, experimentei um cálice de fel, que me dilacerou a alma e permanece em delírio.
                   A mãe do José Sebastião, José Olímpio, José Hermínio e Josiane e eu nos casamos, após um romance de Romeu e Julieta, guerra declarada entre nossas famílias. Vivemos o Jardim do Capuleto. Nada nos afastou e minha noiva engravidou. Nos casamos na catedral de Bragança Paulista e fomos morar numa casinha modesta do Bairro das Mostardas, em Monte Alegre do Sul, gélido no Inverno, entretanto, seus habitantes eram de espírito tépido, amável e generoso.
                   Entretanto, no dia três de janeiro de 1955, o Sr. Hermínio de Camargo Fagundes, meu sogro, veio a falecer, quase ao amanhecer. Para comodidade da viúva, fomos residir na cidade de Socorro. Eu era professor primário, parcos vencimentos, muito pobre.
                   Recordo-me, quinze para as cinco da manhã, diariamente, tomava o trem, vagão de segunda classe e dele descia, meia hora após, na Estação Dr. Carlos Norberto. Em seguida caminhava a pé para o Grupo Escolar “Marcos Alves da Cunha”, cujas aulas tinham início às 8:00 horas. Sentava-me num banco de madeira, no pátio, até que a Maria Pereira abrisse a porta de sua casa e me chamasse para tomar um cafezinho, de seu fogão de lenha, coado na hora. Era uma mulher simples e caridosa, a parteira do bairro.
                   Minha, então esposa, era assistida por um médico, de origem árabe, que nos aconselhou viéssemos à Serra Negra, para que ela se submetesse ao raio X, eis que o aparelho de Socorro estava em desuso, avariado.
                   Nós éramos de Serra Negra e a mãe dela, muito religiosa, entendeu que não poderia a filha se expor à curiosidade de nossos conterrâneos, casara grávida, um escândalo para as beatas.
                   Em primeiro de junho subimos para o Hospital, às nove horas da manhà. Dr. Allim Pedro ordenou que a paciente fosse, imediatamente, para a mesa de parto. À tarde, foi para a roça, atender uma outra cliente e não voltou. Soube, passado algum tempo, que o veículo quebrara e o facultativo não conseguiu regressar.
                   Faltavam quinze minutos para as 24:00 horas e a madre diretora, japonesa, pela aparência, não me permitiu que fosse à sala de parto. Pedi-lhe que chamasse outro médico e ela me disse que havia uma briga entre os médicos e de que não o faria.
Fui à sala do telefone e chamei o Dr. Mário Pares, após consultar a lista telefônica. Ele chegou de chambre sobre o pijama, entrou na sala de parto, saiu em seguida e me disse que a parturiente estava preta e não poderia fazer cesariana, não contava com equipe de enfermeiras. Foi taxativo: “escolha, ou a mãe ou o filho, um dos dois deverá ser sacrificado”. Não havia tempo para reflexão, setenciei meu filho à morte.
                   Meu filho foi arrancado a ferros. Era de feições divinas, olhos verdes, foi enterrado no Cemitério da Saudade, aqui em Serra Negra, penteada uma chuca, em seus cabelos negros.
                   Amanhã, irei visitar seu túmulo, jamais visitado pela sua mãe e avó materna.
                   Pedir-lhe-ei perdão, pela minha sentença macabra. Sei que, nem Deus, poderá me perdoar.
                   Esta a mais triste de minhas amargas recordações. Castigo, por não seguir os sábios conselhos de meus pais!... 

 
CORRESPONDENTES:

1.     missa de “requiem” - que tem formulário próprio, celebração com paramentos pretos, com música.
2.     exornavam - enfeitavam.
3.     damasco - tecido de seda com tafetá, fabricado primitivamente em Damasco, com desenhos acetinados, em fundo branco.
4.      opa - espécie de capa sem mangas. É usada em atos solenes pelos irmãos de confrarias religiosas.
5.     preciosa - muito rica.
6.     alarido - gritaria, clamor.
7.     bordão - bastão, cajado grosso.
8.     turíbulo - vaso em que se queima o incenso.
9.     incenso - resina aromática, que se queima nas festas da igreja e que é extraída de uma árvore terimbintácea.
10. mitra - cobertura para a cabeça usada entre os persas, egípcios, árabes, bispos, arcebispos e cardeais.
11. pálio - sobrocéu portátil, sustentado por varas, que se leva nos cortejos ou procissões para cobrir a pessoa, que se festeja ou o sacerdote, que leva a hóstia consagrada.
12. cibório - vaso em que se guardam as hóstias ou partículas consagradas.
13. simulacro - efígie, imitação, semelhança, aparência.
14. circunspeto - que olha à volta de si, cauteloso, prudente.
15. essência - aquilo que se faz que uma coisa seja o que é. Natureza íntima das coisas, que  constitui a natureza de um objeto.
16. ínsito - inserido, inerente, inato, congênito, gravado no espírito.
17. aporia - figura de retórica, com que o orador mostra hesitar sobre o que há de dizer.
18. néscio - que não as é, ignorante, estúpido, inepto.
19. aurora - amanhecer.
20. ocaso - hora do sol-posto.
21. magnética - que tem a propriedade de atrair certos metais.
22. bússola - caixa com uma abertura circular, dentro da qual se move uma agulha magnética.
23. barlavento - bordo do navio, que fica para o lado donde sopra o vento.
24. sinédrio - supremo conselho entre os judeus.
25. fariseu - membro de uma seita judaica.
26. herodiano -  pertencente à doutrina do herodianismo.
27. saduceu - membro de uma seita judaica.
28. Ladislau Japiassu - ouvidor, que mandou assassinar Líbero Badaró.
29. Ralação - tribunal judicial de segunda instância.
30. dissensão - divergência.
31. ambivalência - qualidade do que tem dois valores.
32. renascimento - ressurgir das artes, ciências e letras.
33. introspecção - observação do interior.
1.      volúpia - prazer sensual.
2.      presságios – prognósticos.
3.      falésias - terras ou rochas altas e íngremes à beira-mar.
4.      escarpada - quase a prumo.
5.      rendilhadas - adornadas.
6.      palheiro - lugar ou casa em que se guarda palha.
7.      amarelo-esmaecido - amarelo-demaiado, desbotado.
8.      arribana - pequena casa coberta de colmo.
9.      colmo - mcaule de junco.
10. regalista - pessoa que defende regalias.
11. liberal - partidário do princípio da liberdade política e civil, que tem idéias avançadas em sociologia.
12. Funchal - uma dentre as cidades mais belas do mundo, meiga e florida, debruçada sobre o mar, observando altiva a baía. Num sublime contato com Deus. Funchal - lugar onde crescem funchos. Funcho – planta umbelífera. Umbelíferas - família de plantas dicotiledôneas, cujas inflorescências têm a forma de umbela. Umbela - gerada ao sol, sombrinha, pequeno pálio redondo. Umbela - inflorescência formada por eixos que, partindo do mesmo ponto, chegam à mesma altura, produzindo uma superfície convexa, à semelhança de um guarda-chuva, como a flor das assembléias (plantas). Funcho-marítimo – planta dos rochedos das praias.
13. reverendas - documentos em que um bispo permite a um seu diocesano ordene-se em outra diocese.
14. demissórias - relativas à demissão.
15. cosmógrafo – indivíduo versado em cosmografia; cosmografia – descrição astronômica do mundo.
16. cartógrafos – indivíduos versados em compor cartas geográficas.
17. exsurge- ergue-se.
18. alter-ego – outro ego.
19. embrenhar – internar-se nas brenhas, nos matos.
20. perquirir – investigar com escrúpulo.
21. Mombeig – Pierre Mombeig veio ao Brasil para se agregar aos professores da missão francesa, convidada a participar da fundação da Universidade de São Paulo.
22. enfibrar-se – tornar-se enfibrado, forte.
23. Capitania – designativo de antiga divisão administrativa do Brasil.
24. Pulvis veterum renovabitur –  O pó dos velhos será renovado.. Escrevi esta crônica para meu filho mais velho.


                                         
                                                  Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade       

                                                             Sebastião Pinto da Cunha

CONFITEOR I - CONTINUAÇÃO

37. RUA DIREITA
                   Até 1674 chamou-se “direita que vai para Santo Antonio”. Em princípios do século XVII já existiam sobrados na então “rua Direita da Misericórdia”. Nessa época era hábito das mulheres envolver-se em baeta (pano de lã) ao sair de suas casas.
                   No ano de 1775 o Governador proibiu tal uso, tendo em vista que muitas mulheres, com o rosto vedado, adentravam, mesmo durante o dia, em casas de homens e, também, porque criminosos assim se disfarçavam.
Em 1897 o nome dessa rua foi substituído por Floriano Peixoto, pela Câmara, porém, em 1899, voltou à sua denominação.
                   Segundo o professor Mário Jorge Pires, “rua Direita, que é tudo menos direita, não foi maluquice dos vereadores. Direita que queria dizer que a rua ia direto de um ponto a outro” (chamava-se Rua Direita de Santo Antonio).
                   Manuel Rodrigues Ferreira, presidente da Academia Paulista de História, afirma que vem estudando o assunto e chegou à seguinte conclusão: “Rua Direita ficava na cidade de Damasco e onde Saulo permaneceu após a sua visão. A história é contada no Novo Testamento, no Livro dos Atos 9:11. Em Portugal, desde a Idade Média o fervor religioso começou a dar o nome de Rua Direita a vias públicas. Assim, em Coimbra existe a Rua Direita que começa na Câmara Municipal e é completamente torta, mais do que a nossa. Em Lisboa, existe a Rua Direita de São Paulo. Mas os povoadores portugueses logo após o Descobrimento, em 1500, começaram a trazer essa tradição para as vilas e cidades do Brasil.
                   Assim, no Guia Postal Brasileiro da ECT, de 1985, em 74 cidades, das 76 pesquisadas, 9 ainda possuem uma Rua Direita: Goiânia, São Luís do Maranhão, Recife, Nova Friburgo, Nova Iguaçu, Mauá, Mogi das Cruzes, Osasco e Presidente Prudente. E 15 possuem Rua Damasco, incluindo a capital, que tem duas. Sem contar as São Paulo. Assim, aqueles três elementos relatados na visão de Saulo são comuns: Rua Direita, Damasco e São Paulo (Saulo). Grande número de cidades do Brasil trocou o nome ua Direita por outro”. (artigos publicados no Jornal da Tarde, nas edições de 7 e 11-01-1998).
                   José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência, nasceu em Santos, na Rua Direita, uma das treze ruas existentes na Vila, em 1763. A rua Prudente de Moraes, de Serra Negra, já se chamou Direita.


38. O PRIMEIRO CIVILISTA NO BRASIL

                  Francisco Justino Gonçalves de Andrade se notabilizou, sendo considerado o primeiro civilista brasileiro. Entretanto, nascera na Ilha da Madeira, Portugal, na freguesia do Campanario, em 18 de fevereiro de 1821. Morreu na cidade de São Paulo, em 25 de julho de 1902.
                  Aos dezoito aos de idade veio para Brasil, na tentativa de fazer fortuna. Entretanto, percebendo que sua vocação não era o comércio, matriculou-se na Faculdade de Direito de São Paulo, mercê dos conselhos recebidos de seu tio, Dom Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, bispo daquela diocese, que havia cursado Direito na Universidade de Coimbra.
                  O curso acadêmico de Francisco Justino foi revelação de extraordinário talento, alcançando os mais brilhantes triunfos, concluída, em 1850, sua formatura em ciências jurídicas e sociais. No ano seguinte defendeu tese e recebeu o doutoramento, tendo pouco depois, num concurso público, que ficou célebre e em que foi o primeiro classificado, sido nomeado lente substituto e mais tarde lente catedrático da Faculdade, em que fora um dos mais estudiosos e distintos alunos.
                  Foi como lente da cadeira de Direito Civil que verdadeiramente se notabilizou, sendo considerado o primeiro civilista do Brasil, de seu tempo. Suas preleções como professor, as consultas, que de todas as partes do Brasil lhe eram dirigidas, o alto conceito, que dele formavam os mais abalizados jurisconsultos brasileiros e ainda o fato de haver sido nomeado membro da comissão encarregada de dar parecer acerca do projeto do Código Civil, elaborado pelo ilustre jurisconsulto Dr. Felício dos Santos, provam que Dr. Justino possuía os requisitos indispensáveis de talento e de saber para ter deixado uma obra perdurável e em que, de maneira mais eloqüente, afirmasse os dotes notáveis de seu espírito privilegiado e de sua vastíssima erudição.    
                  Não tendo militância política, jamais adotou partidarismo, todavia, era amigo pessoal de D. Pedro II, de quem foi Conselheiro. Com o advento da República foi destituído do cargo de diretor da Faculdade de Direito, sendo em seguida jubilado de professor. Incinerou os originais de suas obras, permanecendo o saber e a mensagem ao seu discípulo RUI BARBOSA, o maior civilista deste País.


39. DEÃO ANTONIO JOAQUIM GONÇALVES DE ANDRADE

                  Nasceu na Ribeira dos Melões, na Quinta Grande, em 7 de dezembro de 1795, ordenando-se de presbítero, em 1821. Foi cônego da Sé de Funchal. Em 1834 era secretário de D. Francisco Rodrigues de Andrade, quando este prelado emigrou para a Itália. Com outros eclesiásticos, acompanhou seu superior hierárquico, quando estabeleceram residência nos arredores de Gênova.
                  Com o falecimento do bispo, fixou residência em Lisboa. Chamado para a Madeira em 1844, pelo prelado da Diocese, D. José Xavier de Cerveira e Souza, para o auxiliar nos debates com Roberto Kalley e seus sequazes protestantes.
                  Antonio Joaquim deixou o cultivo das letras, o convívio com destacados literatos, estabelecendo sua residência junto ao prelado, prestando os mais relevantes e assinalados serviços. Em 1846 foi nomeado vigário geral do bispado e, em 1853, Deão da Catedral.
                  Quando chegaram à Madeira, em 1852, a imperatriz D. Amélia e sua filha, a princesa D. Maria Amélia, foi nomeado seu capelão e confessor, servindo-lhe de secretário. Assistiu aos últimos momentos da princesa, de quem gozava da mais subida consideração, profunda e respeitosa estima. Em companhia do Dr. António Luz Pita, auxiliou a Imperatriz na fundação do Hospício e instalação provisória do hospital para tuberculosos, antes da construção da casa suntuosa, onde atualmente se encontra.
                  O Deão Andrade acompanhou os despojos mortais da princesa D. Maria Amélia, em 1853, para Lisboa, ali fixou sua residência, continuando no serviço da Imperatriz.
                  De raro talento e vasta cultura intelectual, gozando de muito prestígio e consideração, pelos dotes de espírito e qualidades de caráter. Seu convívio em Lisboa foi com luminares das letras e vultos políticos proeminentes, mercê de suas virtudes, saber e encantadora lhaneza de trato.
                  Revelou-se escritor de largos méritos nas notas, que escreveu para a tradução dos Fastos, de Ovídio, feita por Castilho e, também, nas anotações, que adicionou à edição da História Insulana, de António Cordeiro, publicada em 1862.


40. A FREGUESIA DA QUINTA GRANDE

                  É uma das cinco freguesias do Concelho de Câmara dos Lobos. Criada em 24 de julho de 1848, pelo desmembramento de alguns sítios da Freguesia de Câmara dos Lobos e do Campanário, cuja sede é a Capela de Nossa Senhora dos Remédios, elevada à categoria de Curato em 8 de fevereiro de 1820. Possui uma área de 4,19 quilômetros quadrados e uma população de 1976 habitantes. Sua riqueza econômica provém da agricultura e construção civil. A Este, limita-se com a Freguesia de Câmara dos Lobos, a Oeste, com a Freguesia do Campanário, ao Sul, com o oceano Atlântico e Freguesia do Campanário, limites muito próximos aos que existiam na altura de seus primeiros proprietários.
                  Primeiramente, chamou-se Quinta do Cabo Girão, propriedade do donatário João Gonçalves Zarco. Seu segundo donatário foi seu filho João Gonçalves Câmara, de quem descende Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, consoante seu escudo.
                  São naturais da freguesia da Quinta Grande: o bispo Dom Mateus de Abreu Pereira, nascido em 8 de agosto de 1742, na Ribeira dos Melões e falecido em São Paulo, em 5 de março de 1824; Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, nascido em 14 de março de 1867 e falecido em São Paulo, em 26 de maio de 1847; do Campanário: Deão Antonio Joaquim Gonçalves de Andrade, nascido em 7 de dezembro de 1795 e falecido em Lisboa, em 16 de janeiro de 1865, com seus restos mortais trasladados para o Funchal; Padre Antonio Silvino Gonçalves de Andrade, nascido em 12 de setembro de 1822 e falecido em 4 de março de 1902, em Câmara dos Lobos, no sítio do Caminho Grande e Preces, onde na altura residia; Doutor Francisco Justino Gonçalves de Andrade, nascido em 18 de fevereiro de 1921 e falecido em São Paulo, em 25 de janeiro de 1902; Padre, Deputado e Doutor João Jacinto Gonçalves de Andrade, nascido em 10 de fevereiro de 1825 e falecido em São Paulo, em 18 de janeiro de 1898.


41. CÔNEGO E DEPUTADO DOUTOR JOÃO JACINTO GONÇALVES DE ANDRADE

                  Nasceu na Freguesia do Campanário, em 10 de fevereiro de 1825. Era filho do tenente Francisco Joaquim Gonçalves de Andrade e de Dona Caetana Maria de Macedo. Frequentou o Seminário de Funchal, ordenando-se presbítero. Embarcou para o Brasil, onde era bispo seu tio. Dom Manoel Joaquim Gonçalves de Andrade, em São Paulo e onde era lente da Universidade de São Paulo seu irmão, o Conselheiro Francisco Justino Gonçalves de Andrade.
                   Primeiramente, fixou-se em Vassouras, Província do Rio de Janeiro, onde residiam suas irmãs, inclusive, Maria Emília Gonçalves de Andrade, que veio para o Brasil com nove anos de idade, desembarcara no Rio de Janeiro, enquanto seu primo Francisco Mendes Gonçalves, de catorze anos de idade, seguiu para Buenos Aires, no mesmo navio, vindo de Funchal. Foi morar com suas irmãs, casadas com comerciantes portugueses. Já mocinha, na Barra do Piraí, conheceu o açoriano João Augusto Pereira de Lacerda, casando-se em Vassouras. Dessa união, nasceu Sebastião de Lacerda, que estudou na Universidade de São Paulo e foi ministro do Supremo Tribunal, pai de Maurício de Lacerda e avô de Carlos Lacerda, notável jornalista e político brasileiro.
                   Em A Casa de Meu Avo, décima segunda obra de Carlos Lacerda, considerada sua obra prima, o ilustre escritor, jornalista e político dedica páginas destacadas ao seu tio-bisavô, Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, quando menciona um relógio, com o qual Domitila de Castro, a Marquesa de Santos, presenteara o íntimo amigo. Tiveram um relacionamento, quando este era imediato de Dom Mateus, precedendo ao Imperador, D. Pedro I. Menciona encontrar-se o relógio com sua prima Dulce, que reside na Praça da República, em São Paulo.
                   O padre João Jacinto, quando exercia as funções de seu ministério, ao proceder um sermão da Sexta-Feira da Paixão na matriz de Vassouras, pregou com tanta eloquência que uma crioula beata, que se postava bem próximo ao púlpito, começou a chorar baixinho. Diante da narrativa do suplício de Jesus, o sofrimento e o pranto de Maria Santíssima no calvário, as trevas caídas sobre o mundo, a carola passou do pranto aos berros. E lamentava tanto o episódio de Jerusalém que o padre João Jacinto, para prosseguir, teve de interromper o sermão, dirigiu-se paternalmente, dizendo: não precisa chorar assim, minha filha. Isso tudo foi há tanto tempo! E sabe lá se é verdade?”
                   Atendendo a conselho de seu irmão, Conselheiro Francisco Justino Gonçalves de Andrade, matriculou-se na Universidade de São Paulo e nela se doutorou. Participando de concurso para uma das cadeiras, foi nomeado lente, onde exerceu o magistério até o ano de 1891, quando se jubilou.
                   Jamais abandonou suas funções eclesiásticas, não obstante haja sido brilhante deputado provincial.


42. ARRUAMENTO DOM MANUEL JOAQUIM GONÇALVES DE ANDRADE

                   Por deliberação camarária, de 9 de julho de 1998, a Quinta Grande passa a ter um arruamento com o nome do Bispo Dom Manuel Gonçalves de Andrade. Corresponde este arruamento a um seguimento da antiga estrada real 23, no seu trajeto pelo centro da Quinta Grande, estendendo-se entre a estrada Profa. Alice do Carmo Gonçalves de Azevedo Pereira e a estrada João Gonçalves Zarco, passando junto à Igreja Matriz.
                    Na sequência dos fatos, tivemos notícias da personalidade ilustre de Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, revelações de sua passagem, há dois séculos. Soubemos de suas origens e a realidade de uma existência fantástica, com início em 14 de março de 1767, na Freguesia de Campanário, na Quinta Grande, no lugar das Amoreiras, Ilha da Madeira, Portugal. Chegou ao Brasil em 1797, assumiu a direção do bispado em 23 de dezembro de 1827, com término em 26 de maio de 1847. Portanto, veio aos trinta anos de idade, foi sagrado bispo da cidade e Província de São Paulo aos sessenta, vindo a falecer aos oitenta. Há uma cadência do número sete, eis que nossos netos pertencem à sétima geração.
                   Seu filho, também, chamou-se Manuel Joaquim, sua neta, Ana Cândida de Andrade e a filha dela, minha avó, Amélia Augusta de Andrade; meu pai, Olympio. Assim se estende toda uma romaria repleta de sonhos, impregnada de amor, passível de profundas reflexões. Foram-me reservados os desígnios da narrativa, tarefa dos últimos cinquenta e sete anos, quando do encerramento, haverá de coincidir com o término de minha efêmera e conturbada existência.
                   Dedico estas páginas à minha bisneta Mariana. Esta haverá de transmitir, às gerações adventícias, a saga de nossa família, emoldurada por coragem inquestionável.
                   Meu avô paterno, o Capitão Francisco Pinto da Cunha, veio do Vale do Paraíba, aos dezoito anos de idade, participar da introdução do plantio do café no município de Serra Negra. Voltou à São José dos Campos para se casar com Amélia Augusta de Andrade.
                   O café entrou no Brasil via Guiana Francesa. Do Pará migrou para o Rio de Janeiro e Vale do Paraíba, onde a qualidade da terra não era das melhores. Daí a “Marcha para o Oeste” (do Vale do Paraíba). Veio para a região de Campinas, alcançando Serra Negra e cidades circunvizinhas.
                   Era chamado Chico Ramos, decorrente de um segundo casamento de sua mãe, Maria Antonia das Dores. Aos sete anos de idade perdera o pai, vítima de acidente. Sua mãe uniu-se, em segundas núpcias, com Antônio da Silva Ramos.
                   Adquiriu terras no Bairro dos Costa, formou cafezais, prosperou extraordinariamente. Pelo seu bom nível intelectual,  sendo muito trabalhador e liberal, conquistou popularidade. Ao lado do Cel. Pedro Penteado, fundou o Diretório do Partido Republicano Paulista em Serra Negra, instituindo o jornal O SERRANO, com seus recursos pessoais. Foi vereador à Câmara Municipal, Intendente, Prefeito, enfim, chefe político durante quarenta anos. Não obstante abastado fazendeiro, morreu pobre, quando suas propriedades foram à praça. Deixou, entretanto, um nome honrado, herança insuperável. Herdamos sua vontade férrea, mola de nosso transporte. Somos, hoje, uma família de intelectuais, austeros e destemidos. Acostumados a enfrentar poderosos, ninguém nos amordaça.
Quando D. Afonso I cercava Lisboa, D. Payo Guterres mandou meter várias cunhas na muralha do Castelo e por elas subiu com os seus, concorrendo com este ato de heroísmo para a tomada da cidade. Consta que foram nove esses heróicos guerreiros e outros tantos têm os Cunha por irmãos. Deu-lhes, então, o rei com o direito de usar por apelido Cunha, em prêmio do feito por eles praticado.
                   Feliciano Pinto Coelho da Cunha chefiou a Revolução Liberal em Minas Gerais. Um dos fundadores de São João Del Rei era Cunha. Ainda hoje, lá reside um contingente de Pinto da Cunha.
                   Francisco Pinto da Cunha Leal foi reitor da Universidade de Coimbra, ilustre escritor e político português.
                   Pinto Bronze, um dos maiores filósofos da cultura portuguesa, foi meu Mestre na Universidade de Coimbra.
                   Evidencio estes nomes para que sirvam de exemplo aos meus.


43. PORTUGAL NO BRASIL

Existe um elo muito forte entre o Brasil e Portugal. Ligação não apenas oriunda das relações políticas entre a metrópole e a colônia, mas também de acentuado vínculo psicológico e cultural estabelecido na sucessão dos séculos.
A vocação natural brasileira nasceu, necessariamente, da cultura portuguesa, da mesma maneira que, em verdade, os valores brasileiros iniciais eram dos portugueses. Essa influência moral impregnou não somente nosso cerne cultural e valorativo, porém, arraigou-se na estrutura política do Brasil, vez que a maioria dos dirigentes nacionais, formadores da consciência política brasileira, frequentaram a célebre Academia Coimbrã.
De tudo se deduz que o Brasil, já em sua origem, localizava-se, geograficamente, na América, todavia, culturalmente, na Europa, preferentemente Portugal. Somaticamente brasileiro, com alma portuguesa.
A História de Portugal será sempre incompleta sem as narrativas de seus episódios no Brasil. Não diria seja o Brasil prolongamento de Portugal, contudo, de única e exclusiva identidade. Evidentemente, falo como português nascido no Continente Americano. Em minhas origens, pelo conduto materno, sou trasmontano de Chaves, eram Pires e Pinto da Fonseca meus avós. Naquela região nórdica deixaram suas quintas, não volvendo revê-las, eis que conquistaram largas herdades em Serra Negra, Estado de São Paulo, guardando imensa saudade de seu Portugal, terrinha tão querida.
Pelo ângulo paterno, estivemos em Portugal quando, com D. Afonso I, cercamos Lisboa e, sob as ordens de Payo Guterres, metemos cunhas nas muralhas do Castelo e as transpusemos com o batismo de Cunha.
Meu progenitor paterno se chamou Francisco Pinto da Cunha; em Portugal, pontificou Francisco Pinto da Cunha Leal, intelectual, Reitor da Universidade de Coimbra e político destacado.
Minha progenitora paterna chamou-se Amélia Augusta de Andrade, descendente direta de D. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, nascido no Campanário da Ilha da Madeira, do tronco de Zargo, dos Andradas Câmaras (dos Lobos). Hoje, o monumento ao Primeiro Povoador, estátua de Zarco de autoria de Francisco Franco, de uma beleza original de concepção, ergue-se no encontro das avenidas Arriaga e de Zarco.
D. Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, estudou em Coimbra, frequentou os mesmos compartimentos do Palácio Real, onde cursei o Mestrado e reinaram nossos antepassados, somos descendentes de Gonçalo Fernandes, filho de Afonso V e Joana, a “Excelente Senhora”.
Daí a razão pela qual se legitima nossa “saudade antropológica”.


44. DOM PEDRO PRIMEIRO


                   Em Portugal chamou-se IV – O Rei Soldado. Aos nove anos de idade embarcou com destino ao Brasil. Em 1822 proclama a Independência do Brasil . No mesmo ano é proclamado Imperador. Em 1828, D. Miguel consegue ser proclamado Rei de Portugal. D. Pedro vê-se obrigado a resgatar a coroa portuguesa. Reúne forças militares no Açores, com apoio da França e da Inglaterra e desembarca no Porto, apanhando de surpresa as forças absolutistas. Inicia-se uma guerra civil, dura dois anos, com a derrota de D. Miguel, em maio de 1834. D. Pedro veio a falecer no mesmo ano.

                   Com a morte do pai, o exílio de D. Miguel, D. Maria é aclamada rainha, aos quinze anos de idade. Aos dezesseis, casa- com o irmão da madrasta, Augusto de Leuchtemberg, que morre após dois meses. Passado um ano casa-se com Fernando de Saxe-Coburgo Gotha, resultando onze filhos. Reinou até 15 de novembro de1853, com 34 anos de idade, quando morreu ao dar à luz seu décimo primeiro filho.

                   No reinado de d. Maria II realizaram-se reformas importantes. Tornou-se obrigatória e gratuita a instrução primária. Foram criados os liceus distritais, as Escolas Politécnicas de Lisboa e do Porto, o Conservatório Nacional e o Instituto de Agronomia. Foi construído o Teatro Nacional em Lisboa, que adotou o nome da rainha. Foram introduzidos os selos postais nos Correios, á semelhança do que já acontecia na Inglaterra. Era filha de D. Leopoldina, tia de Maximiliano de Áustria, Imperador do México, que morreu em Serra Negra.

                   Com a morte de D. Maria II, seu filho D. Pedro, contava com 15 anos de idade. Até sua maioridade, 18 anos, o governo foi assegurado por seu pai D. Fernando, na condição de regente do reino. D. Pedro V, sem descendência, morreu em 1861, quando sobe ao trono seu irmão, D. Luís, até 1889, quando é sucedido por seu filho D. Carlos. Em primeiro de fevereiro de 1908, um atirador dispara e atinge de morte o Rei. Um outro homem dispara sua carabina e mata o príncipe d. Luís Felipe, ascendendo ao trono seu irmão, D. Manuel II. Seu reinado durou apenas dois anos. Em quatro de outubro de 1910 é proclamada a queda da monarquia e implantada a República Portuguesa. D. Manuel II abandona Portugal, com destino ao exílio na Inglaterra, onde morreu em 2 de julho de 1832.


45. CREPÚSCULO

                   Eram duas horas da tarde de vinte e seis de fevereiro de 1846. D. Pedro II e sua comitiva, inclusive a imperatriz Teresa Cristina chegavam ao Largo da Glória. Junto à Santa Casa fora montado um arco de flores e folhas, representando o portal da cidade de São Paulo, capital da Província. Para recepcionar, encontravam-se o Bispo Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, octogenário, demais autoridades e o povo. Salva de vinte e um tiros de canhão e o presidente da Câmara entregou a Sua Majestade a chave da cidade, de prata, com relevos de ouro.

                   Os carros de boi atravancavam as ruas da cidade. Vinham da área rural. Ida Pfeiffer, uma austríaca em visita, nesse mesmo ano, observou: “Os eixos de madeira de tais carros, não são nunca azeitados, o que produz uma música infernal”. Estacionavam nos largos São Gonçalo, hoje, Praça João Mendes, São Francisco e São Bento. Outras vezes, tropas de burros tomavam as ruas. Os serviços públicos, ainda precários. Desde 1829, havia iluminação pública. Insuficiente, assim foi descrita: “Uma enorme geringonça de ferro, pregada na parede de uma esquina, estendia por cima da rua um longo braço, em cuja extremidade estava dependurado um lampião. Colocados de longe em longe nas ruas principais, a luz desses lampiões, alimentados com azeite de peixe, difundia uma claridade mortiça, que só iluminava um pequeno espaço, projetando longas sombras movediças, quando o vento balançava os lampiões”.

                   Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade, durante meio século, catalisara as atenções da população paulistana. Em consonância às suas atividades religiosas, era político e fazendeiro. De fino trato, egresso da Universidade de Coimbra, era orador fluente. Bem relacionado, Conselheiro de D. Pedro I, vinha de família de estirpe. Descendia de Afonso V e  João Gonçalves Zarco, primeiro povoador da Ilha da Madeira. São naturais da Quinta Grande: o bispo Dom Mateus de Abreu Pereira, Deão António Joaquim Gonçalves de Andrade, Padre António Silvino Gonçalves de Andrade, Doutor Francisco Justino Gonçalves de Andrade, primeiro civilista no Brasil, Conselheiro de D. Pedro II, Padre, Deputado, Professor e Doutor João Jacinto Gonçalves de Andrade.
                   Em nove de julho de 1998, a Quinta Grande passa a ter um arruamento, denominado Bispo Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade. Corresponde este arruamento a um seguimento da antiga estrada real 23, no seu trajeto pelo centro de Quinta Grande, estendendo-se entre a estrada Profa. Alice do Carmo Gonçalves de Azevedo Pereira e a estrada João Gonçalves Zarco, passando junto à Igreja Matriz.