sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

CONTOS CONTINUAÇÃO

Meu pai vendeu sua propriedade, antevendo consequências posteriores, funestas. Voltamos logo a ser pobres, entretanto, evitou-se que me tornasse um fora de lei. Tive que trabalhar para prosseguir meus estudos. Embora traumatizado pelos sucessivos fatos, sou muito feliz, vivo o término de existência muito pacífica.


9. A HISTÓRIA E A LENDA 
                   Quero que este seja o capítulo de profundas reflexões. Desejo a satisfação concorde de minhas faculdades cognitivas. Ajoelho-me defronte a Verdade, porque ela é Eterna. Recito a Baronesa de Krudner, quando diz: “as almas frias, têm apenas memórias, as almas ternas, têm saudades e, para elas, o passado não é morto, mas um ausente. O melhor dos amigos é o passado”. Lê Bom, em sua Evolução dos Povos, argumenta: “A constituição mental de uma raça representa não somente a síntese dos seres vivos, que a compõem, mas, sobretudo, a dos numerosos antepassados, que contribuíram para a sua formação. Não são os seres vivos, mas os mortos que representam papel principal na existência de um povo. Eles são os criadores de sua moral e os orientadores inconscientes de sua conduta”.
                   O saudoso Doutor Alfredo Buzaid, notável mestre do Direito, em discurso publicado na Revista da Faculdade de Direito, assim se expressa: “ A verdade que a história procura, ilustra, mas não fascina. A deformação que a lenda insinua, comove, embora seja mera fantasia. Se a verdade resulta da lógica e da razão, a lenda nasce do sentimento. Ambas, porém, são belas. A lenda é um meio de transmitir mensagens, mais dócil e mais humano do que a verdade. Por isso é que se prefere muitas vezes a delicada ilusão da lenda à dura expressão da verdade. Respeita-se sempre a verdade porque é necessária; ama-se a lenda, porque ela é útil, ainda quanto enganosa”.
Tenho sido leal à História de Serra Negra. Sempre comprovei com documentos meus relatos. Percorri arquivos, no Brasil e na Europa, haja vista o que encontrei na Ilha da Madeira sobre Fernando Maximiliano de Áustria e adiante escrevo. Entretanto, nossa História não é fria. Tamanho é seu calor, que ela, é ao mesmo tempo: História e Lenda, pois que fala de muito amor e ternura.

10. ROSA DE LIMA SANTOS PINTO
    (vítima de seus sentimentos puros)

                   Rosa de Lima dos Santos Pinto, Rosinha, morava na Rua José Bonifácio, era filha de Antonio dos Santos Pinto, português e rico comerciante.
                   Caetano Cecília, jovem imigrante italiano, sapateiro, enamorou-se de Rosinha, que passou a amá-lo com todo o encantamento de seus dezoito anos de idade e juventude.
                   O pai da princesinha, homem orgulhoso, não permitiu o namoro, vindo a mesma a adoecer quando, em remorsos, já há dois meses de seu fim consentiu a Caetano as visitas.
                   Até que, na tarde de 02 de julho de 1894, os sinos da Igreja Matriz dobraram soluçantes. O céu era azul e límpido.
                   As famílias deixaram suas casas e, em romaria, iam em acompanhamento à delicada flor, cujas pétalas desfolhavam, rumo ao cemitério “São Benedito”, sua penúltima morada.
                   Desde a fundação de Serra Negra jamais a tristeza e a dor bateram tão fortes e profundas, lancinantes.
                   Aberto o caixão para o último adeus, as flores se confundiam: Rosinha, botões, cravos, violetas e miosótis, arranjo angelical.
                   Soterrado o branco caixão, os acompanhantes deixaram a necrópole, quando o jovem desolado, que estivera oculto, atrás de um túmulo, aproxima-se da campa.
                   Caía a noite, derreando seu manto negro sobre as capelinhas dos anjinhos, envolvendo os túmulos, confundindo-se com as cruzes e as lápides marmóreas.
O desatinado, que se escondera, durante o enterramento, trazia, segundo o relato do coveiro da época, os olhos vermelhos, uma expressão de horror. O rosto macerado, a barba esquálida, denunciavam seus pesares, pela continuidade da dor.
Dobra-se em meia, ajoelha-se em convulsões reiteradas, celerado, com as mãos, as unhas enclavinhadas... Remove a terra fofa, entre soluços ininterruptos e pleno amargor.
Em meio à solidão taciturna da noite, vaga-lumes faiscavam entre as lajes tumulares.
Do silêncio sepulcral, ouve-se o último apelo: Rosinha!... Rosinha!... Rosinha!...
Eis o quadro bosquejante:
- A noite é alta e gélida. No anil da abóbada celeste, as estrelas, tremeluzindo, cintilam e vão formando as constelações.
Transpondo o Morro dos Fonseca, a Lua Cheia, enamorada, romântica e pálida, completa o espetáculo, na orquestração silente da Natureza.
- Cantam os bacuraus, aves noctívagas, na dolente canção de “amor de perdição”.
- As réstias do luar desenham, no perfil do noivo desgraçado, segundo os contornos, que sua sombra projeta na fresca campa.
Hoje, os restos mortais de Rosinha repousam no Cemitério da Saudade, para onde foram transladados.
Certamente, noite alta, ainda nestes tempos, pode-se notar a silhueta do mancebo, em seu amor eterno, noivado permanente, guardando o túmulo de Rosinha.pides marmfundindo-se com as cruzes e as l as capelinhas dos anjinhos, envolvendo os to
*** Antonio Santos Pinto, perdido em remorsos, voltou para Portugal, vindo a falecer em 25 de fevereiro de 1935. Seu nome foi dado à via pública de acesso ao Hospital “Santa Rosa de Lima”, tendo o mesmo remetido quantias para ajudar a obra.
Contou-me Maria Rita Mendes, neta do procurador do indigitado, que sua esposa não o acompanhou na volta à “terrinha”. Ficou para acalentar recordações da filha.
Eis a mais triste história de “nosso povo e nossa gente”.
·        Maria Rita Marchi Rielli, em sua obra Addio Itália, Salute América, em que se consagrou como brilhante escritora serra-negrense, às fls. 111, 112 e 113, nos dá sábia versão sobre Rosa de Lima: “Certo dia, voltando da missa em companhia de uma serviçal, Rosa teve o salto de seu sapato de cetim quebrado numa pedra, envolta em poeira. Por sugestão da empregada, ambas pararam na porta de um sapateiro, a fim de consertar o sapato. O jovem profissional era um italiano de dezoito anos, chamado Caetano; alto, bonito e charmoso. Vinha da Sicília, lugar de mulheres fortes, morenas, de sangue quente.
·        Ao pegar, das mãos de Rosa, o seu sapatinho , ficou encantado com elas, tão delicadas, alvas como nata de leite. A moça, por sua vez, nunca havia conversado com um homem tão bonito e impetuoso.
·        O amor floresceu no coração de ambos ao mesmo tempo! Uma afeição nasceu, na troca de olhares furtivos, nos bilhetes amorosos, no afeto confessado em rápidas conversas, longe da vigilância do pai da menina. Um dia, plenamente ciente de seu amor e também do de Caetano, Rosa resolveu, inocentemente, contar aos pais a intenção de casar-se com o italiano sapateiro. Ela viu o pai dedicado transformar-se num algoz, seu orgulho ferido transformou-o numa pessoa sem coração. Imaginem, sua rica menina apaixonar-se por um simples sapateiro, e imigrante, inda por cima!
·        (segundo a autora, Rosinha caiu em profunda depressão, foi definhando e ficou tuberculosa, expirou, deixando seu namorado desconsolado e a vida de seus pais destruída). 


11. DOUTOR JOVINO SILVEIRA
    (15/08/1898 – 21/04/1970)
“Cultor da Vida”


                   Médico de verdade, também Líder Político, Doutor Jovino Silveira foi insuperável Apóstolo do Bem, figura carismática e inquestionável.
                   O tempo não passa, passamos por ele e, nesse trânsito, para o Terceiro Milênio, transcende, ultrapassa, eleva-se, acima de tudo, a figura ímpar do “pai dos pobres”, morreu igualmente muito pobre. Todos, de seu tempo, sabem dessa verdade, porque, jamais usufruiu de quaisquer fortuna.
                   Entretanto, esculpiu, nos corações de sua geração, com perenidade para os pósteros, a marca, que não se pode delir, a expressão da existência. Cultor das existências de seus semelhantes, permaneceu sempre esquecido da sua própria.
                   Na consciência de que “a existência é o bem maior” e, de que a vida é eterna, cultuou, para o próximo, esse direito inalienável, gerido por Deus.
                   Sabemos bem que, ao lado da parte somática de nossa personalidade está a existência. Contudo, a existência é atributo paralelo e universal, que nos sacramenta, desde o momento da concepção até a morte.
                   E foi desse curso sagrado que cuidou o Apóstolo do Bem, cuja imagem espiritual, jamais será perdida da lembrança. Cuidou da existência de todos, que o cercavam.
                   Cirurgião transcendente, convidado, inúmeras vezes, para integrar a equipe do Doutor Montenegro, jamais deixou sua Comunidade. Quiseram-no candidato a deputado, tantas vezes. Manteve-se em sua morada modesta, onde estava seu consultório, atendendo seus inúmeros pacientes e conversando com Deus.
Sofreu, com resignação, todas as experiências pertinentes ao ser humano comum.
                   Deixou uma aura na memória de seu povo, não com o desejo de que a cultuem, porém, para que nos sirva de exemplo, de luz, assim como, às gerações adventícias, de que, acima das vaidades humanas, está o mundo da espiritualidade.
                   Na Grande Enfermaria da Casa do Pai, vive sua experiência terrena, cuidando dos enfermos na outra esfera, aplicando atenção à Vida, esse Bem Eterno.


12. A ÚLTIMA CARREADA


                   Cabisbaixo, cabelos prateados pelas geadas dos anos, lá vai o tradicional carreiro e sua boiada. Enquanto as rodas do carro cantam na estrada, lágrimas furtivas caem de seus olhos, molhando a camisa listrada, de mangas compridas. Os olhos morteiros e embaçados dos dez bois choram, também, consoante ao companheiro de tantas glórias e jornadas.
                   É sua derradeira carreada...
                   Transita calado, soluçante. Não tem uma só expressão, palavra alguma para estimular sua boiada amiga.
                   Nas cercas paralelas, a criançada, em sua ingenuidade, dá aparato ao adeus das cinco juntas de bois malhados.
                   Quem desconhecesse as razões, teria a impressão de que iriam participar de mais uma festa.
                   Segue caminhando e, agora, já lá na chapada, o carro ganha distância e vai desaparecer. As crianças festivas, alegres e ingênuas, com suas mãozinhas espalmadas, sem saber ser o último, dizem adeus.
Na verdade, o destino dos velhos bois de carro, após tantas alegrias, é o matadouro municipal da cidade vizinha.
                   E, na intimidade, o pranto do carreiro, o caminhar dos bois, denotam tristeza, aumentada pelo som monótono e dolente do sino da Freguesia, um canto da Ave Maria.
                   É o mais triste cair da tarde, em pleno Inverno. A própria natureza, a Estação do Ano, o horário, parecem montar o pano de fundo, apertando mais forte o peito sofrido do carreiro. Já na última encruzilhada, derreiam-se as forças, as pernas do carreiro parecem entrar pela terra a dentro, ele olha pára a boiada e, em delírio, sente vibrar sua alma cândida, em constrição de mágoa dorida.
                   Atira, manda seu pensamento ao passado, em profunda introspecção. Lá muito longe, por detrás da poeira dos anos, levantada pelo seu carro e pelos bois, ele se recorda do início de sua convivência espetacular com esses seus pacientes companheiros, quando ainda, pleno de alegrias e esperanças, andou pela estrada florida da existência.
                   Quantos festejos, quanta participação. Objeto de estampa de Folhinha, fotografias e troféus, pequena história de grandes heróis. Quantos desfiles filmados. E, acima de tudo, artistas de televisão. Isto mesmo, foram artistas de novelas.
                   Porém, acima de tantas epopéias, estava o convívio, o doce estreitamento, a conversa falada e a fala muda; a contemplação recíproca, a vivência conjunta.
                   Como, então, separar-se definitivamente!... À vezes, somente a partida já é triste demais. Disse um poeta francês: “partir é morrer um pouco”. A separação neste episódio, tinha a conotação do nunca mais, do estamos nos destruindo, sem poder destruir o passado. “Nem Deus muda o que passou”, disse o pensador.
                   Entretanto, ali, parecia ser negada a verdade. Dava a impressão de que se estava dando um tiro no passado. Contudo, isto se faz ou se tenta, quando o passado é ruim, de péssimas recordações. No caso
presente, os dias se foram com tanta felicidade e amor. Melhor seria, até, não recordar.
                   Que fez o carreiro? Soltou os bois no pasto contíguo. Deixou o carro no acostamento, voltando para sua água furtada.
                   Melhor viver de recordações. Impossível matar as boas lembranças, embora, elas nos matem de saudades. Melhor morrer de saudades que matar os que nos ensinaram a ser nobres, pelas nobres recordações. 
                   Este é um pequeno capítulo, uma página da mais bela história, que conheci.
                   (Esta a saga de Anísio Pereira da Silva, uma das figuras iminentes, que guardo na lembrança. Quando leu esta crônica, colocou-a num quadro. Amou, foi incompreendido, muito sofreu neste vale de lágrimas. Percebo a luz de sua presença).


13. A LUZ DA LAMPARINA

                   Sempre passei à distância. O casebre ficava lá no fundão, a uns oitocentos metros da estrada.
                   Era meu hábito trafegar durante o dia. Vinha à Cidade da Saúde no Meia Noite, manga-larga mineiro, marchador de olho de porco. Manso, contudo, bastante refugador.
                   Na noite dos fatos, que passarei a relatar, permanecera durante mais tempo no Comércio. Resolvera ir ao cinema e, quando cheguei às proximidades da Biquinha, os ponteiros do relógio deveriam marcar pouco mais de 20:20 horas.
                   Em frente à choupana, uma luz se movimentava, quase em forma de cruz. Não resisti à curiosidade, desci a íngreme ladeira, própria mesmo só para cavalo ou a-pé-dois.
                   Firme na rédea, com enorme dificuldade, cheguei às proximidades da morada modesta.
                   No terreiro, encontrei uma velhinha aflita, que foi dizendo que sacudira a lamparina pedindo socorro, eis que, seu marido sofria terríveis dores.
                   Fui encontrar o enfermo metido num catre de varas amarradas sobre quatro forquilhas, envolvido nuns trapos, que atestavam a miséria em que vivia o casal.
O ancião-enfermo aparentava uns noventa e tantos anos de idade, pouco mais que sua mulher, que iluminou meu rosto com o lume-aviso e pedido de socorro.
                   - Vosmecê deve ser da família do finado Chico Ramos... O seu ar não nega a feição dele.
                   - Sou seu neto, respondi surpreso à fisionomista desesperada.
                   O velhinho se retorcia na cama, gemendo de dor.
                   - Volto à cidade, disse à minha interlocutora. Apressei meu cavalo, abalando-me morro-acima. Quando chegava à casa do Dr. Jovino os galos já cantavam, nos fundos dos quintais.
                   Ele saiu de ceroulas, com aquele jeitão de caboclo, lábios grossos, respirando profundamente.
                   - Quem está doente? Perguntou-me de pronto, bem assustado, pensando tratar-se de meu pai. Aliás, os dois eram íntimos amigos.
                   O médico era Chefe Político. Meu pai fazia parte de sua equipe, composta por João Patrício, Sebastião de Abreu, os filhos de Arlindo Pinheiro, o Honório de Lima e outros decididos e respeitados.
                   Relatei os fatos ao facultativo, fomos à casa do Zé Brás e eles partiram, prometendo-me esperar na porteirinha, quando deveria ceder meu cavalo ao doutor e descer a pé, segurando o queixo do animal, com a mão esquerda firme na rédea, perto do freio.
                   Dr. Jovino era homem prevenido, levava em sua bolsinha puída, alguns medicamentos, uma seringa fervida e ampolas de um remédio, que me disse, na volta, tratar-se de óleo canforado.
                   -Pela manhã, mandarei buscá-lo para que se interne no hospital, disse o doutor.
Subimos o morro, eu puxando o cavalo pela rédea, o Dr. Jovino com o seu chapéu de cor cinza, Zé Brás nos esperando na estrada.
Numa curvinha, dei uma parada, para tomar fôlego, quando me virei e pude contemplar o seguidor de Hipócrates.
Fato curioso, por volta ao seu busto havia uma luz circundante, que soube tratar-se, mais tarde, de sua aura. Mas, refulgia, na
noite negra, que nos permitia divisar apenas as formas do caminho. Luz diáfana, uniforme, me impressionou, dando-me quase certeza de que estava delirando.
Ali estive contemplativo, perplexo em meu ofício, quando ele me instou a prosseguir.
Dias após, voltando à cidade, procurei o Zé Brás, que cochilava em seu Fordinho Vinte e Nove, quando lhe disse de minha curiosa visão.
O Zé Brás, simples e espontâneo foi dizendo: “Já me acostumei a ver essa luz, que circunda o rosto do doutor. Nas primeiras vezes perdi o sono, com o tempo passou a ser um hábito. Quando ele volta de suas jornadas profissionais, acudindo algum infeliz, tenho oportunidade dessa constatação”.
O motorista, homem pobre, pai da Maria, minha colega no quarto ano primário, do Externato “Sagrada Família”, em 1944, falava com tamanha naturalidade, demonstrando familiaridade com aquele mistério.
Certas noites, madrugada a fora, às vezes, pela meia noite, vou de automóvel para aquelas bandas.
A casinha não mais existe. A lamparina não clareia o terreiro, em forma de cruz.
No dia seguinte, vou ao Museu, toco nos pertences do Dr. Jovino e fico pensando: será que ele morreu ou os anjos vieram buscá-lo vivo, simulando a morte para não se despedir de seus amigos?
Algo me diz que ele não partiu. Está presente, junto daqueles que conviveram com ele, num clima de amor.
No imenso hospital da eternidade continua seu apostolado, no contato com aqueles, que o cercaram e fizeram de sua vida um Hino de Amor.
Os objetos, que pertenceram ao Dr. Jovino, parecem querer falar de seu devotamento. Porém, suas palavras morrem na garganta do tempo, para serem revividas na memória daqueles que, com ele,
conviveram e puderam presenciar a passagem de um Apóstolo do Bem, por este Vale de Lágrimas.


14. A VINGANÇA DO FILHO DO SINHÔ
                                 
Lá bem distante, onde a terra e o céu se abraçam, era a mata das lavras; hoje, velhos cafeeiros e a capoeira atestam o cansaço da terra, exaurida pela ação de várias gerações.
Fora solo fértil. Ali chegaram os desbravadores abrindo clareiras nas matas, lançando as primeiras sementes, formando mudas, após, o cafezal. Vieram de longe, com suas famílias e escravos. Originários de Vale do Parnaíba, portavam avantajada experiência na cultura do café.
Concomitantemente, à prosperidade das lavouras, medrou, no seio da fazenda, inusitado amor. Não de Sinhozinho e Sinhazinha, porém, de jovens escravos.
Nitinho Matias e Leucádia não eram crianças, nem bem adultos, quando vieram de São José dos Campos, então Villa de São José do Parnayba para Serra Negra, duas cidades da Província de São Paulo, que se ligaram pela migração de lavradores.
Desde pequena infância, nasceram-lhes em seus corações, o desejo recíproco de se unirem para sempre.
Ocorre que Leucádia já despertara olhares sequiosos do fólho do Sinhô, que tudo podia, quando algo desejasse. Mantivera, entretanto, o segredo de seu apetite sexual pela negrinha, esta com raízes em Angola.
Nitinho, em sua ingenuidade, jamais desconfiava o que se passava na cabeça do Sinhozinho.
Foi quando fatos terríveis vieram a ocorrer. O negrinho, que fora menino de recados e serventia ao redor da casa Grande, crescera no convívio de José, também chamado Júnior, por ser primogênito e assim assinar.
Os olhares apaixonados de Nitinho o traíram. Numa tardinha, na estrebaria, enquanto os muares se fartavam no cocho, após um dia
estafante, Júnior deitado na grama perguntou ao escravo: o que você sente por Leucádia?
-Nada além do desejo de tê-la ao meu lado, desde o raiar do dia, até o despertar d’outro. Uma vontade incontida de respirar, a todo instante, o ar que ela respira. É a flor do campo, meu feitiço verdadeiro. Desejo que enfeite meus dias e noites, ao longo de nossas vidas.
Júnior a tudo ouvira, sem dizer uma palavra. Deveria partir, após algumas semanas, para a Villa de São José do Parnayba, em tarefa confiada pelo genitor, venda de umas terras, que lá ficaram abandonadas.
Na manhã seguinte dissera ao pai que acolhera o negrinho para o acompanhar, na longa jornada.
A conversa na estrebaria, a confidência, dera ao escravo devida coragem para se declarar à sua amada. Os sentimentos eram recíprocos, como dissemos antes. Leucádia o amava muito mais que esperasse. Trocaram juras de amor, pediram permissão ao Sinhô para se casarem.
Passados alguns dias, após rápida despedida, partiram, o filho do Sinhô e o escravo. Às vésperas, os enamorados, ocultos por frondoso jequitibá, viveram o amor em seus segredos e mistérios, sem que as palavras possam relatar.
Júnior levava amplos poderes delegados pela confiança paterna; Nitinho, a mais bela e doce das recordações e a esperança de breve retorno.
No Vale de Paraíba, Júnior cuidava dos negócios, enquanto o mancebo negro morria de saudades.
Vendida a propriedade, ficara avençado, no negócio, a permuta do escravo acompanhante com outro mais maduro em anos.
No dia da volta, Nitinho obtivera, estupefato, a notícia de que, também fora transacionado, como acessório da herdade. Nascera, como Leucádia, na Fazenda “Montes Claros”, onde, pela vez primeira, sentira agudo e lancinante amor por ela.
Desta forma desleal tentava o filho do Sinhô, onipotente, sufocar um amor, que já produzira fruto, aos pés do jequitibá, tão robusto quanto aos sinceros sentimentos.
Após o retorno e alguns meses, viu Júnior, nascer o filho de Nitinho e sua amada.
Todas as tardes, filho ao colo, Leucádia deitava seu apaixonado olhar na encruzilhada, numa miragem, pedindo que Nitinho viesse acalentar os olhos vivos e impregnados de interrogações de seu negrinho. Jamais presumiu a vingança do filho do Sinhô.
Quando chovia, das folhas do jequitibá, caíam orvalhos, que Leucádia recolhia, misturando as lágrimas de suas saudades!...
Hoje, ainda, passado bem mais de um século desses sucessos, há quem afirme vê-la sentada, nas noites de luar, aos pés da árvore do amor e da dor, que testemunhou o mais belo e legítimo romance destas paragens.


                  15. ELES QUASE MORREM DE SAUDADES
                                           
Note bem, meu amigo, os octogenários sentados naquele banco branco da Praça da Matriz, de quando em quando, trocam palavras. O que dirão? Certamente, muito de saudades.
Os conheci faz meio século, Minha mãe, de seu tempo, sabia-lhe detalhes. Sempre foram nosso Município. Os sucessos, que passarei a narrar, são os recolhidos dos lábios maternos.
Zenóbia residia na mesma rua de meus avós; Manoel Vicente de Assis, na zona rural. Quando jovens, Manoel, aos domingos, insistia passando pela calçada, buscando avistar sua escolhida. Na Igreja Matriz, à Missa das Dez, primeiro trocavam olhares, depois, bilhetinhos, mensagens apaixonadas.
Ocorre que Zenóbia estava comprometida com o filho do compadre de seu genitor, jovem da cidade, de família abastada, prestando Serviço Militar. Embora sabendo da tratativa paterna, não obstante as advertências da mãe, sentiu amadurecer o amor, em toda sua intensidade, no jovem coração.
Eis que certo domingo, quando Manoel passava pela calaçada, Zenóbia foi surpreendida pelo pai, que a viu sorrindo para o mancebo. Perdida no devaneio, não suspeitou a presença de seu genitor, quando seu segredo foi desvendado. As ameaças foram reiteradas, transmitidas pela mãe.
Cumprindo o período, no Exército, do prometido, o pai de Zenobia comunicou-lhe o noivado próximo. Manoel não mais passava pela calçada, porém, alimentava seus sonhos, na Santa Missa, ao entregar e receber bilhetinhos.
A não concordância com o noivado e, consequentemente, casamento, atropelou-a ao Convento, último e doloroso subterfúgio.
O clima quente, a saudade, o ambiente do claustro, caíram problemas à saúde de Zenóbia. Já no segundo ano postulante, seu pai foi chamado pela madre Superiora, recebendo notícias de que exames de laboratório haviam denunciado começo de tuberculose. Felizmente em inicio, entretanto, o regulamento da Ordem Religiosa não permitia a presença de enferma junto à Entidade. Aliás, asseverou a Superiora, Zenóbia, não obstante seus pendores e fina educação, não demonstrara vocação á vida monástica.
A jovem voltou ao lar, recobrou a saúde ameaçada. Restabelecida, movido pelo remorso, seu pai consentiu o casamento com Manoel.
Casaram-se, tiveram muitos filhos e netos. Viveram e vivem na Zona Rural.
Hoje, ali sentados no banco branco da Praça, indubitavelmente, quase morrem de saudades, relembrando tanto amor.
Prestemos atenção: eles se levantam, saem de mãos dadas, dirigem-se à matriz, vão à Missa das Dez, talvez num sorriso soluçante de indeléveis recordações.
Se trocarem bilhetinhos dirão: Deus, como te amo!.


16. O MENINO DE NAZARÉ

                    
Era uma choupana colocada numa vereda. Juquinha, voltando da Escola, das aulas de reposição, véspera de Natal, desviara-se da estrada, ingressando pela trilha. Pequeno incidente. Entretanto, o jovem estudante jamais identificou das razões.
Por quinze minutos percorrera o atalho, deparando-se com a cabana, dessas casinhas de pau-a-pique, mais figurando fotografias ilustrativas de volumes antigos de Geografia. A curiosidade o levou até estreita porta, acesso aos três cômodos. No primeiro assentava-se um fogão de lenha, cuja fumaça saia mansa, num cinza-esbranquiçado. Uma mesa e um banco para duas ou três pessoas, donde se levantou um velhinho, entrado em mais de noventa anos de idade, cujos cabelos e barbas se semelhavam a dois maços de algodão. Encurvado, sem dentes, nariz adunco, olhos profundos e misteriosos.
- Entre, disse uma voz rouca, vinda do fundo do peito, com sinais visíveis de cansaço. Estendeu a mão direita, em atitude familiar, carinhosa e simples.
- Sente-se... Já o esperava. Dou-lhe esta manga, colhida faz pouco.
- Moro na Vila, disse o infante, na rua dois, perto da Igreja Matriz. Sou filho do Prático, único boticário do povoado. Todavia adentrei o atalho e aqui cheguei, não entendo das razões, mas, fiz bem. Não sabia da existência deste local.
- Realmente, exceto duas almas bondosas, que costumam me socorrer nas maiores necessidades, ninguém transita até aqui. Não mais trabalho, nem me afasto além de vinte ou trinta braças, onde termina o terreiro e começa a floresta. Fui lenhador, com a proibição da caça, faz muitos anos, pessoa alguma penetra a mata.
- Contudo, sabia de sua visita. Na noite passada, sonhei tudo o que estou vivendo. Até preparei um bolo de fubá, vou passar um café para nós dois. Há quase meio século não me sento acompanhado, à mesa.
Juquinha sentou-se, sem que não estivesse perplexo, diante de tanta evidência dos fatos.
- Muito breve devo partir desta. Cumpre-me uma revelação. É chegado o momento. Guardo um segredo e tarefa confiada por um homem em pânico, que passou por aqui faz muito tempo. Pediu-me que, quando me abeirasse à morte, desse a alguém a notícia de que na colina existe uma pedra pontiaguda, sob a qual repousa um tesouro.
- Sei que és minha última visita.
- Como sabes que sou a derradeira?
-Faz parte de meu sonho, não devo comentar.
Após algum tempo, necessário para partilhar do bolo e do café, o menino se despediu, dirigindo-se à sua casa. Seus pais estavam ansiosos, pela demora, mas, logo à chegada, não souberam dos exatos motivos.
Na noite de natal, foi o Juquinha quem sonhou. Viu o menino de Nazaré revelando-lhe que o velhinho estava moribundo.
Logo ao amanhecer segredou os fatos aos pais, levando-os à cabana. Lá chegando, encontraram a porta fechada. Borboletas de todos os matizes, se avizinhavam, querendo entrar. Pássaros coloridos cobriam a cumeeira, espalhando-se cantares pelo sapé, cobertura precária. Da mata
vinha o canto dos tangarás, em orquestra. Na copada dos jacarandás; sabiás enchiam a floresta de melodias.
Num pequeno esforço abriu-se a portinhola, apenas amarrada por uma tira de pano. Ali, deitado no catre, feito de varas e cipó, estava o ancião, em cujo rosto contemplava-se a paz celestial. Quando o garoto o fitou, parecia lhe sorrir, um doce sorriso, desejoso de prosseguir a conversa anterior.
Abertas a porta e a janela, as borboletas adentraram, cobrindo-lhe o corpo vestido de surradas roupas, muito embora, bem limpas. No batente da janela, os pássaros esvoaçando, com seus gorjeios, enchiam de acordes o modesto ambiente.
Do bosquejo deste quadro nunca se viu, certamente, tão festejada cerimônia fúnebre. O Prático cuidou do féretro, mandando o enterrar junto ao seu pai.
Seguidas as pegadas da revelação, foram encontrar a arca com moedas de ouro, medalhas e cordões do mesmo metal, que haviam sido roubados do avô do menino, quando fora assassinado, trinta anos passados.
O garoto pediu ao pai que a fortuna fosse destinada à construção de uma igreja, em memória e glorificação ao Menino de Nazaré.
Eis a razão porque o Vilarejo, hoje, chama-se NOVA NAZARÉ.
A manga exalou um suave aroma, durante dias.
Presentemente, Juquinha é farmacêutico. Quando chega o Natal, percorre casebres de pessoas humildes, um por um, por onde passa, durante o ano inteiro.
Curiosa e tocante história de Juquinha!... Juquinha de Nova Nazaré.
 
 

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