terça-feira, 11 de janeiro de 2011

CONFITEOR I - FINAL

46. MEMÓRIAS DE 1969

emoções, que jamais dissipam ...


J. S. Fagundes Cunha – Doutor em Direito pela UFPR
Membro da Academia de Letras dos Campos Gerais
Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
Diretor Geral da Escola Superior da Magistratura da América Latina

         Nasci em 1957, portanto, em 1969, contava 12 anos de idade.

         Quando ouvia o som do rádio, após a revolução de 1964, tremia, ao soar a música do Repórter Esso. Mal sabia que eu (thetano) trazia, em minha memória, figuras de imagens de 70 milhões de anos, mas isso é uma história para ser explicitada adiante.

         Meu pai é o primogênito de dez irmãos. De alguma forma, durante muitos anos, foi uma referência para os demais irmãos e irmãs.

         Vivíamos um momento singular. Após a vida modesta de professor e diretor de escola primária, trabalhava ele como advogado na Prefeitura Municipal de Diadema, coordenando a administração. Eram tempos de alegria, morávamos em Águas de Lindóia, um paraíso incrustado na Serra da Mantiqueira, em um vale e clima ameno, água maravilhosa, paisagem encantadora.

         Ele comprou um sítio, para mim, então, uma enorme fazenda, pouco mais de oito alqueires de sonhos, projetos descobertos e integração com a natureza. Dois lagos imensos, com carpas em abundância, onde passava horas a pescar. Um alambique, onde amarrei meu primeiro fogo, quando a destilada escorria ainda quente e com baixo teor alcoólico, mas com alto poder de embriagar.

         Caçar passarinhos, retirar de seus ninhos e criá-los com amor e dedicação, ao ponto de abrir a porta da gaiola e retornarem para a mesma, até que, naturalmente, aparecesse alguma sedutora fêmea e ela o fizesse acompanhar, era um dos prazeres, além de uma bicicleta nova, com a qual apostava corridas em uma avenida imensa, jogar bola, acompanhar a campanha do ALEC – Águas de Lindóia Esporte Clube, mas conhecido por amigos Leais Eternos Companheiros, campeão das estâncias hidrominerais de carona, sem dinheiro, conformavam um universo idílico.
         Foi o primeiro ano, quando deixei a pressão de também ser o primogênito e ter de ser o exemplo da família para todos os primos, primas e irmãos e Deus sabe lá o que mais ...
Minha mãe, como a de Mauro Rasi, utilizava as mesmas expressões. Eu e meu irmão José Olímpio, dois anos mais novo, saíamos pela manhã e retornávamos à noite, almoçando sabe-se lá onde e esfomeados, buscando um jantar, quando vinha a locução imperdoável de minha mãe: Galo, onde canta janta! De imediato, pensava que, um dia, teria minha casa e não mais suportaria tal humilhação. Besteira de uma criança, que não conseguia, sequer, entender a alegria, dela, ver os filhos livres, cheios de saúde, vivendo a vida em seu extremo de felicidade.
         Há uma cena singular, que expressa tal período de inocência, a ser quebrada com o incidente, mais adiante narrado.
         Era um domingo e meu pai me chamou para conversar no escritório. Ele, com a elegância de sempre, deitado no sofá, de chapéu, botas feitas à mão e exclusivas, perora: - Menino, sua mãe disse que está desesperada com você. Afirma que você não estuda, somente anda de bicicleta, pesca, joga bola e fica na rua. Enquanto ele falava, minha mãe estava escondida, por trás da porta, ouvindo a conversa.
         A imagem de meu pai de então, naquele escritório, que se me afigura imenso, era de um ícone de cultura e erudição. Estudou quatro anos de latim, interno no Colégio Diocesano “Santa Maria”, em Campinas, mais três no Curso Clássico, afeito à leitura dos clássicos e filósofos, dado a escrever e publicar seus artigos. A vasta biblioteca no escritório, com livros lindos e reluzentes, que pareciam jamais haver sido utilizados. Ciente de quantos discursos escreveu para políticos, enfim, era uma responsabilidade enorme para mim...

         Prossegue, ralha e afirma: - Sua mãe quer eu o interne no Colégio Diocesano, em Campinas.

         Ouço a respiração de alívio de minha mãe. Para ela estava certo, seria internado o filho que, até então, era um excelente aluno e, de repente, tornara-se um ser desconhecido.
         Ela sempre afirmava que bom filho era o Max Tadeu, filho de uma irmã de meu pai. Ele sim era educado, um menino fino, de bons modos, que comia moderadamente, à mesa, não respondia (sei lá o que isso significa ????), enquanto eu e meu irmão, éramos praticamente selvagens, sem modos adequados, comíamos rapidamente e, muitas vezes, com as mãos. Nos apresentávamos sempre sujos, de brincar na terra. Coitado do Max Tadeu, tínhamos verdadeiro ódio ao infeliz. Quantas surras, eu e meu irmão, demos nele por causa das comparações de minha mãe. Ele, sem irmãos, adorava ir para o sítio, conviver conosco e com a nossa liberdade, mas minha mãe, em suas comparações, obrigava-nos surrar o primo,

         Vem a proposta final de meu pai: - Você quer ir para o colégio ou ganhar um cavalo?
A resposta imediata: - Quero o cavalo. Se o senhor me internar, somente vai ter prejuízo. Eu fujo amanhã mesmo e volto para casa. Dá-me logo o cavalo.

         Minha mãe, na altura dos acontecimentos, passa a chorar e bradar: - Um filho que não estuda e um pai irresponsável. O que é que eu faço de minha vida e mais aquela lenga-lenga de mãe. – Como eu vou educar esse menino? Sem ela, talvez, não estudasse tanto e, com tanto afinco, no futuro.

         Sempre fui grato a ela. Ganhei uma égua e, de quebra, uma linda charrete.

         Entretanto, a recordação, que marcou profundamente meu ser, também, ocorreu em manhã de um domingo. Como disse, meu pai é o mais velho, de dez irmãos. Naquela manhã, saímos de carro, eu e o irmão caçula de meu pai, para abastecer o veículo. Ele iria viajar e fora até Águas de Lindóia para resolver umas questões. Passou a me narrar o que ocorria.

         Meu pai fora denunciado no SNI. Estava sendo investigado pela Aeronáutica, em Cumbica e seria interrogado no dia seguinte. Meu tio estava ali para discutir o que iriam fazer. Disse-me que outro irmão havia providenciado o dinheiro e que, se a ameaça de sumirem com meu pai, viesse a se consolidar, ele iria matar a pessoa, que denunciara meu pai e fugir para o exterior, Esclareceu, tudo estava acertado.

         Fiquei, inicialmente, perplexo. Tomei a responsabilidade, de pronto. Disse que eu iria junto matar a pessoa. Que, também, era o primogênito e tinha a responsabilidade para com a família, como sempre me fora ensinado. Uma força interior, intensa, veio com segurança e tranquilidade. Decidi participar da execução do delator.

         Meu tio serenou-me, disse-me que ficasse calmo, tudo seria efetivado, que eu era muito jovem para tamanha empreitada. Manifestou sua felicidade em constatar meu caráter. Meu pai não sumiu, não foi morto o delator. Sumiu minha inocência e morreu, em mim, um pouco e a beleza da vida.

         Eram anos de inocência, de pureza, tudo maculado pela ameaça de perder meu pai. Aquele que, quando chegava do trabalho, nos fins de semana, vindo de Diadema, era o alento de nossas vidas; aqueles pêssegos enormes, o pão sovado, tantos outros gestos de afeto e carinho, a certeza de que, no dia seguinte, por volta das quatro horas da madrugada, iríamos ver a aurora, juntos, a caminho do sítio, onde estavam todas as aventuras, que uma criança podia sonhar. Como poderiam querer sumir ou matar meu pai, era algo que eu não conseguira compreender.
Meu pai abandonou tudo e fomos morar em Cajuru, praticamente, na clandestinidade. Em 1970, meu irmão soltou um rojão, quando a Itália marcou um gol e meu pai o pediu-lhe que não mais o fizesse, pois, estávamos escondidos naquele lugar, com medo de que algo acontecesse conosco e que o rojão poderia causar imensos problemas.

         Em uma palestra, que proferi em Franca, na UNESP, em setembro de 2.002, quando discorria a respeito de Direitos Humanos, tive a oportunidade de dizer sobre nossa vida em Cajuru.

         Meu pai nunca voltou a ser o mesmo. Foi-se aquela alegria vivaz de seu semblante e restou impressa, em sua alma, a sensação de que, em algum momento, poderá ser alvejado. Suas idéias, vez por outra, estão confusas, como se, ainda hoje, estivesse sob ameaça de não poder rever seus filhos... Vive afastado de todos, em um exílio voluntário, desnecessário.

         O tio, que iria liquidar o delator, foi o único vereador pelo PT, em Indaiatuba, naquela gestão de seis anos, presidente da Câmara, nos dois primeiros e dois últimos anos. O tio financiador, hoje é Juiz Federal, em Cuiabá, após se aposentar como Procurador do Estado de São Paulo.

         Eu sou, ainda, depois de tantos bancos escolares de graduação, especialização, mestrado, doutorado, cursos e mais cursos, e mais de vinte anos de terapia, apenas, aquela criança assustada, à procura de um lar seguro, onde irei morar, serei amado e querido, desejoso de uma família, e ainda com o sincero desejo de matar, em mim, aquele que delatou (matou) meu pai.


47. RECORDAÇÕES


                   Recebi, na última sexta-feira, dia 29 de maio de 2.009, à tardinha, a visita de meu filho José Sebastião Fagundes Cunha. Veio, em sua companhia, uma jovem, de rara beleza. Na manhã seguinte, entregou-me as Memórias, que transcrevo, belíssima e pungente peça literária, certamente, a melhor, que já escreveu. Sensibilizou-me extraordinariamente.

                   Vem de ocorrer que são 20:00 horas do dia 1º de junho, segunda-feira subsequente à visita. Há exatamente cinquenta e quatro anos, experimentei um cálice de fel, que me dilacerou a alma e permanece em delírio.
                   A mãe do José Sebastião, José Olímpio, José Hermínio e Josiane e eu nos casamos, após um romance de Romeu e Julieta, guerra declarada entre nossas famílias. Vivemos o Jardim do Capuleto. Nada nos afastou e minha noiva engravidou. Nos casamos na catedral de Bragança Paulista e fomos morar numa casinha modesta do Bairro das Mostardas, em Monte Alegre do Sul, gélido no Inverno, entretanto, seus habitantes eram de espírito tépido, amável e generoso.
                   Entretanto, no dia três de janeiro de 1955, o Sr. Hermínio de Camargo Fagundes, meu sogro, veio a falecer, quase ao amanhecer. Para comodidade da viúva, fomos residir na cidade de Socorro. Eu era professor primário, parcos vencimentos, muito pobre.
                   Recordo-me, quinze para as cinco da manhã, diariamente, tomava o trem, vagão de segunda classe e dele descia, meia hora após, na Estação Dr. Carlos Norberto. Em seguida caminhava a pé para o Grupo Escolar “Marcos Alves da Cunha”, cujas aulas tinham início às 8:00 horas. Sentava-me num banco de madeira, no pátio, até que a Maria Pereira abrisse a porta de sua casa e me chamasse para tomar um cafezinho, de seu fogão de lenha, coado na hora. Era uma mulher simples e caridosa, a parteira do bairro.
                   Minha, então esposa, era assistida por um médico, de origem árabe, que nos aconselhou viéssemos à Serra Negra, para que ela se submetesse ao raio X, eis que o aparelho de Socorro estava em desuso, avariado.
                   Nós éramos de Serra Negra e a mãe dela, muito religiosa, entendeu que não poderia a filha se expor à curiosidade de nossos conterrâneos, casara grávida, um escândalo para as beatas.
                   Em primeiro de junho subimos para o Hospital, às nove horas da manhà. Dr. Allim Pedro ordenou que a paciente fosse, imediatamente, para a mesa de parto. À tarde, foi para a roça, atender uma outra cliente e não voltou. Soube, passado algum tempo, que o veículo quebrara e o facultativo não conseguiu regressar.
                   Faltavam quinze minutos para as 24:00 horas e a madre diretora, japonesa, pela aparência, não me permitiu que fosse à sala de parto. Pedi-lhe que chamasse outro médico e ela me disse que havia uma briga entre os médicos e de que não o faria.
Fui à sala do telefone e chamei o Dr. Mário Pares, após consultar a lista telefônica. Ele chegou de chambre sobre o pijama, entrou na sala de parto, saiu em seguida e me disse que a parturiente estava preta e não poderia fazer cesariana, não contava com equipe de enfermeiras. Foi taxativo: “escolha, ou a mãe ou o filho, um dos dois deverá ser sacrificado”. Não havia tempo para reflexão, setenciei meu filho à morte.
                   Meu filho foi arrancado a ferros. Era de feições divinas, olhos verdes, foi enterrado no Cemitério da Saudade, aqui em Serra Negra, penteada uma chuca, em seus cabelos negros.
                   Amanhã, irei visitar seu túmulo, jamais visitado pela sua mãe e avó materna.
                   Pedir-lhe-ei perdão, pela minha sentença macabra. Sei que, nem Deus, poderá me perdoar.
                   Esta a mais triste de minhas amargas recordações. Castigo, por não seguir os sábios conselhos de meus pais!... 

 
CORRESPONDENTES:

1.     missa de “requiem” - que tem formulário próprio, celebração com paramentos pretos, com música.
2.     exornavam - enfeitavam.
3.     damasco - tecido de seda com tafetá, fabricado primitivamente em Damasco, com desenhos acetinados, em fundo branco.
4.      opa - espécie de capa sem mangas. É usada em atos solenes pelos irmãos de confrarias religiosas.
5.     preciosa - muito rica.
6.     alarido - gritaria, clamor.
7.     bordão - bastão, cajado grosso.
8.     turíbulo - vaso em que se queima o incenso.
9.     incenso - resina aromática, que se queima nas festas da igreja e que é extraída de uma árvore terimbintácea.
10. mitra - cobertura para a cabeça usada entre os persas, egípcios, árabes, bispos, arcebispos e cardeais.
11. pálio - sobrocéu portátil, sustentado por varas, que se leva nos cortejos ou procissões para cobrir a pessoa, que se festeja ou o sacerdote, que leva a hóstia consagrada.
12. cibório - vaso em que se guardam as hóstias ou partículas consagradas.
13. simulacro - efígie, imitação, semelhança, aparência.
14. circunspeto - que olha à volta de si, cauteloso, prudente.
15. essência - aquilo que se faz que uma coisa seja o que é. Natureza íntima das coisas, que  constitui a natureza de um objeto.
16. ínsito - inserido, inerente, inato, congênito, gravado no espírito.
17. aporia - figura de retórica, com que o orador mostra hesitar sobre o que há de dizer.
18. néscio - que não as é, ignorante, estúpido, inepto.
19. aurora - amanhecer.
20. ocaso - hora do sol-posto.
21. magnética - que tem a propriedade de atrair certos metais.
22. bússola - caixa com uma abertura circular, dentro da qual se move uma agulha magnética.
23. barlavento - bordo do navio, que fica para o lado donde sopra o vento.
24. sinédrio - supremo conselho entre os judeus.
25. fariseu - membro de uma seita judaica.
26. herodiano -  pertencente à doutrina do herodianismo.
27. saduceu - membro de uma seita judaica.
28. Ladislau Japiassu - ouvidor, que mandou assassinar Líbero Badaró.
29. Ralação - tribunal judicial de segunda instância.
30. dissensão - divergência.
31. ambivalência - qualidade do que tem dois valores.
32. renascimento - ressurgir das artes, ciências e letras.
33. introspecção - observação do interior.
1.      volúpia - prazer sensual.
2.      presságios – prognósticos.
3.      falésias - terras ou rochas altas e íngremes à beira-mar.
4.      escarpada - quase a prumo.
5.      rendilhadas - adornadas.
6.      palheiro - lugar ou casa em que se guarda palha.
7.      amarelo-esmaecido - amarelo-demaiado, desbotado.
8.      arribana - pequena casa coberta de colmo.
9.      colmo - mcaule de junco.
10. regalista - pessoa que defende regalias.
11. liberal - partidário do princípio da liberdade política e civil, que tem idéias avançadas em sociologia.
12. Funchal - uma dentre as cidades mais belas do mundo, meiga e florida, debruçada sobre o mar, observando altiva a baía. Num sublime contato com Deus. Funchal - lugar onde crescem funchos. Funcho – planta umbelífera. Umbelíferas - família de plantas dicotiledôneas, cujas inflorescências têm a forma de umbela. Umbela - gerada ao sol, sombrinha, pequeno pálio redondo. Umbela - inflorescência formada por eixos que, partindo do mesmo ponto, chegam à mesma altura, produzindo uma superfície convexa, à semelhança de um guarda-chuva, como a flor das assembléias (plantas). Funcho-marítimo – planta dos rochedos das praias.
13. reverendas - documentos em que um bispo permite a um seu diocesano ordene-se em outra diocese.
14. demissórias - relativas à demissão.
15. cosmógrafo – indivíduo versado em cosmografia; cosmografia – descrição astronômica do mundo.
16. cartógrafos – indivíduos versados em compor cartas geográficas.
17. exsurge- ergue-se.
18. alter-ego – outro ego.
19. embrenhar – internar-se nas brenhas, nos matos.
20. perquirir – investigar com escrúpulo.
21. Mombeig – Pierre Mombeig veio ao Brasil para se agregar aos professores da missão francesa, convidada a participar da fundação da Universidade de São Paulo.
22. enfibrar-se – tornar-se enfibrado, forte.
23. Capitania – designativo de antiga divisão administrativa do Brasil.
24. Pulvis veterum renovabitur –  O pó dos velhos será renovado.. Escrevi esta crônica para meu filho mais velho.


                                         
                                                  Dom Manuel Joaquim Gonçalves de Andrade       

                                                             Sebastião Pinto da Cunha

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